Libéria Neves
“A poesia é sempre um ato de paz. O poeta nasce da paz como o pão nasce da farinha”. Pablo Neruda, em Confieso que he vivido (1974.)
Com referência à definição de Neruda acerca do que é a poesia, o produção franco-chilena Poesia sem fim (Poesía sin fin – 2016), dirigida por Alejandro Jodorowsky, constitui um ato poético.
Jodorowsky constrói um trabalho autobiográfico onde consta sua presença em cena, em momentos que nos fazem duvidar se aquilo é um filme ou a declamação de um poema concreto. Seu corpo está na tela – como personagem, como ator, como ele mesmo. Sua fantasia familiar está em cena – seu filho, o protagonista (Adan Jodorowsky), atua na morte da autoridade do pai (do diretor do filme e do personagem) e no encontro com o amor da mãe, refigurada numa namorada estranha (ambas interpretadas pela mesma atriz, Pamela Flores).
Esta superposição de realidades é apresentada por meio do entrelaçamento de possibilidades estéticas – a música, o teatro, a dança, a literatura, a escultura, a arquitetura, o cinema – constituindo um ato poético.
Infame e sublime, o filme opera num turbilhão de metáforas intercaladas por expressões concretas da bizarria. Assim é possível, em momentos de inspiração e de expiração, manter-se nesta experiência, numa sala de cinema, por 128 minutos que parecem não ter fim.
Diferentemente dos filmes que nos fazem refletir, distrair ou dormir, ESTE nos permite sentir. De fato, uma experiência estética. De fato, um encontro com a arte. Nem sempre um encontro pacífico, embora Neruda defina a poesia (a arte) como “sempre um ato de paz”.
Talvez por isso havia apenas 10 pessoas na sala de cinema (contando comigo); e duas delas saíram por volta de 75 minutos após o início da sessão, interpelados talvez por aquela obra de arte. Ou pelo artista?
Artista é um sujeito corajoso, que mexe com coisa séria. Um bruxo atrevido que não tem noção dos efeitos (no mundo e em si mesmo) daquela bruxaria. E a arte talvez seja a bruxaria, a qual não existe por si só, obviamente. Demanda muito labor para ser construída, mas também encarna um ponto de magia. Digo magia quando me refiro àquilo que não conseguimos explicar nem compreender com as palavras que advêm de um pensamento articulado. Por isso ela (a arte/a magia) se adianta à ciência e até mesmo à filosofia, por ser capturada pelo corpo, pelos sentidos.
Há sempre algo de intangível na arte; algo de certa forma mítico, impossível. Não se reduzindo à linguagem, num trânsito entre o sentido e o não sentido, a arte ultrapassa os significantes e persiste na característica de ser não-toda.
Em Poesia sem fim se pode assinalar e se encontrar com esta dimensão irredutível ao simbólico. Pode-se dizer, o multiartista chileno Alejandro Jodorowsky alcança, em alguns momentos, lugares os quais a linguagem apenas circunda. Talvez esse seja um ato de paz.