Wojciech Andrzej Kulesza
Falando na formatura dos normalistas de São Paulo em março de 1917, Olavo Bilac, gravemente acometido pelo nacionalismo induzido pela Primeira Guerra Mundial espicaçava o patriotismo dos professores: “A escola é o primeiro reduto da defesa nacional; a menor falha do ensino, e o menor descuido do professor podem comprometer, sem remédio, a segurança do destino do país”. Em plena campanha exitosa pelo serviço militar obrigatório, ele explorava o potencial valor dos formandos para estender sua pregação às escolas primárias. Valendo-se com fartura da clássica metáfora que equipara a Escola Normal a um viveiro de “mudas viçosas” que, uma vez formadas, serão transplantadas para “florescer e frutificar” em todos os rincões do Brasil, o paraninfo procurava exaltar o “fervor cívico” dos seus ouvintes associando-o à paixão religiosa: “Na sua cadeira de educador, o mestre recebe a visita de um deus: é a pátria, que se instala no seu espírito”.
Em sintonia com a secularização republicana do sacerdócio docente, o poeta exortava os futuros professores a abdicarem de si mesmos para poderem se dedicar plenamente ao “nobre sacrifício” de servir à pátria. Ao perder sua individualidade, o professor se anularia para assim poder encarnar “a pátria, visível e palpável, raciocinando no seu cérebro e falando pela sua boca”, ou seja, possíveis divergências são eliminadas antes que possam surgir. Abusando de suas licenças poéticas, Bilac, imbuído da pedagogia mais tradicional, transpõe para o contexto do professor na sala de aula toda a liturgia protagonizada pelo padre na igreja: “A palavra, que ele dá ao discípulo, é como a hóstia que, no templo, o sacerdote dá ao comungante. É a eucaristia cívica. Na lição, há a transubstanciação do corpo, do sangue, da alma de toda a nacionalidade”. Afeito à utilização da literatura para o soerguimento moral da nação já na educação infantil, o poeta do célebre verso que embalaria durante muito tempo os filhos dos proprietários de terras – “ama com fé e orgulho a terra em que nascente” – chegava assim a sacramentar a profissão docente na forma de um sacerdócio laico.
Personificando a pátria, “senhora absoluta”, o professor aparece na escola como um “instrumento passível” a seu serviço, sem opinião, nem interesses, nem credo, nem partido, “gerando patriotas”, “filhos conscientes e disciplinados”, “brasileiros dignos do Brasil”, tornando a pátria cada vez maior e mais forte no futuro. Confundindo propositalmente a pátria com a nação, o estado, o governo, com a própria república brasileira, ele diz que ela só velará pelo professor que se mostrar digno da missão que ela lhe confia, dando-lhe nesse caso uma existência de “conforto e glória”. Conferindo um poder divino ao professor, desde que ele abra mão de sua individualidade, a pátria de Bilac soluciona admiravelmente o problema central do liberalismo, organizando em sociedade homens originariamente nascidos livres. Como um deus ex machina, a pátria realiza a tarefa de esclarecimento do professor tornando-o provido e convencido de todo o saber necessário para realizar a contento seu papel de educador.
Naturalmente, dada a origem divina da ideia de pátria auriverde concebida pelo outrora “príncipe dos poetas brasileiros”, ela será onisciente, eticamente exemplar, incapaz de qualquer maldade, qualidades repassadas ao professor convertido. Esse esquema lógico só não funcionará se o professor, “por incapacidade ou por desídia, ou por vaidade”, não cumprir o acordo, rasgando o “pacto sublime” assinado com a pátria e se transformando num maldito “formador de anarquias”. Para evitar esse comportamento indigno, que “desperdiça e infama” o tempo e o salário do docente, basta que ele seja formado por professores que sejam patriotas. Por isso o conferencista se sente à vontade na Escola Normal da Praça, lugar onde “a pátria reside imanente”, já que “a alta palavra da pátria foi ouvida e aceita nesta casa, pelas almas que aqui estão criando tantas outras almas”, externando para a plateia a felicidade de passar ali aqueles minutos.
Vemos assim exposto, mais uma vez, o projeto político acalentado pela maioria dos intelectuais da Primeira República – primeiro, pensar o Brasil, depois reproduzir socialmente esse pensamento – neste caso de um modo quase mediúnico através da mediação dos professores. O discurso gongórico de Bilac na Escola Normal paulista, seja pelo seu valor literário, seja pelas ideias veiculadas sobre educação, seria fartamente citado – inclusive nos meios educacionais mais abalizados como, por exemplo, a célebre Conferência Nacional de Educação realizada no Rio de Janeiro em 1931 – sempre para enfatizar o papel do professor na formação (ou regeneração) da moral no país. Servindo como uma luva para embasar um regime político autoritário e uma educação fortemente diretiva, a “oração” de Bilac acompanharia a marcha do projeto político que acabaria conduzindo o país para a ditadura do Estado Novo.
É óbvio que a fala do orador se dirigia à gente de sua classe, “meus irmãos e minhas irmãs”, identificados por ele a “toda a nossa terra, toda a nossa historia, e nosso futuro” e responsáveis, consequentemente, pela “felicidade do Brasil”. Daí não haver nenhuma preocupação com os conteúdos veiculados na escola em sua proposta: a pátria não precisava ensiná-los a fazer nada, bastava à escola simplesmente ser patriarcal. Se a pátria de Bilac levasse em consideração as transformações naquele tempo em direção a uma economia industrial certamente se curvaria ao mercado incluindo em suas prescrições dirigidas ao professor a preparação para o trabalho, menos pelo seu caráter edificante do que pelo seu potencial crítico. Afinal, nos arredores do “Caetano de Campos”, em plena Praça da República, já podia se ouvir o clamor das ruas em preparação para a greve geral: nem pátria, nem patrão!