A menina que estudou o ônibus – baseado em fatos reais

Ivane Perotti

A literatura é um universo paralelo dotado de todas as condições de vida. A vida são infindáveis universos oblíquos dotados de literatura. E essa é uma história que reconhece ambas.

Mia acordava no final da madrugada: estudar e trabalhar impõem esforços. Cursava uma universidade pública. Pagava passagens, o lanche que firmava o almoço e improvisava o jantar, as páginas de algumas cópias imprescindíveis aos estudos. Tudo muito simples, mas de contabilização pesada no parco orçamento. Dobrou o turno de trabalho. Fazia três em um: como a maioria dos estudantes que não contingenciam esforços à formação. Quando a pandemia, em decreto social, expôs a capitalização das diferenças, Mia valeu-se de um celular de segunda-mão para dar conta das aulas virtuais. À noite, depois da odisseia arriscada e obrigatória de percorrer o trajeto de volta para casa tomando dois ônibus – ônibus são caixas com rodas; superlotados, são perigosas rodas de gerar lucros; em presença da SARS-CoV2, são caixas móveis eficientes na disseminação do vírus – a universitária se dedicava aos estudos. Contudo, a cronologia das obrigações não se apega aos fatos. Quando mais se necessita de algo, mais esse algo se distancia. Lei das tensões e dos desejos – a depender da classe social, certo. Errado. Mia não lera O Segredo, de Rhonda Byrne: a lei da atração não lhe atraía.

No dia desta narração, Mia se encontrava na caixa com rodas superlotada, em pleno trânsito afogado em mágoas e outras caixas de locomoção. Tanto não andava o ônibus que a estudante percebeu o tempo comer as horas. A primeira apresentação de trabalho em grupo daquele semestre aconteceria em minutos. E ela ainda estava na caixa com rodas de gerar lucros: superlotada, abafada, exalando cansaços e medos, máscaras e vírus. Em pé, não sabia se acalmava os colegas no WhatsApp, ou acalmava a si mesma. Por alguns segundos sentiu o peso da caminhada. Mulher, negra, pobre e estudando pedagogia. Era um combo para cair da balança. Só por alguns segundos. Meros segundos de titubeio. Não vivia para se conformar. Apresentaria o trabalho dali mesmo: Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire (edição de 1997). A adrenalina deixou-a mais alta. Procurou com os olhos um pouco de espaço. Na ordem do encaixe, do empurra, do aperta, não havia a menor folga no corredor tomado por outros como ela: operários. Na ponta dos pés, perscrutou cada possibilidade de movimentação. O melhor ângulo para apontar o celular. A luminosidade. Um bolsão de silêncio. Nada. A massa dentro da caixa espremia-se. Mediu o pé da escada do ônibus. A porta fechada servia de apoio para os que não conseguiam assento. Os degraus tornavam-se banco e, se conseguisse fazer um movimento… tanto olhou e des/olhou que chamou atenção para si. No auge de sua investigação, alguém moveu qualquer parte do corpo e Mia aproveitou para acionar o balé das caixas rodantes que geram lucros no desatendimento da população. Puxa a barriga, levanta o braço, faz olhos de desespero por sobre a aba da máscara e tenta seguir. Não foi. Foi. Para. Respira. Vai. Quase na escada. O ônibus arranca e o movimento para a frente, abrupto e descuidado, joga os ocupantes para trás. Um golpe só. Muito aperto. Equilíbrio de passageiro acostumado às caixas coletivas com rodas de gerar lucros supera a performance de muitos artistas. Mia estava no meio do caminho. Do centro do corredor até os degraus do ônibus a lotação estufava. O movimento inicial e o balé do equilíbrio não foram suficientes. A um minuto de sua apresentação, partiu para o verbo:

_ Aqui! essa lotação atrasou e eu preciso apresentar um trabalho. Podem me ajudar a chegar até a escada? Vou usar o celular e …

As águas do Mar Vermelho abriram passagem. Justo e imperioso movimento de reconhecimento do esforço e validação da estudante. Com o melhor espaço no ônibus de acordo com as suas observações, Mia instalou-se. Celular em riste, alguém segurou a sua bolsa, os livros e a frasqueira dos lanches. Ofereceram o degrau para que ela sentasse. Agradecendo, a acadêmica permaneceu em pé. Respirou fundo e conferiu os polegares em sinal de positivo, os sorrisos que apareciam nos olhos dos passageiros e o silêncio completo, absoluto, acolhedor. Não tirou a máscara. Iniciou a sua fala descrevendo o palco de seus estudos. Nada mais propício à leitura e apresentação resenhada de Pedagogia do Oprimido – Freire aplaudiria o evento. Falou. Falou bonito, a Mia. Citou. Estabeleceu relações, fez referências, chamou à discussão, ilustrou e dedicou o trabalho aos passageiros do ônibus. Entre emocionada e com os nervos à flor da máscara pelo inusitado do evento, deixou que as lágrimas saíssem dos olhos quando a caixa que roda lucros explodiu em palmas e ovações. Do outro lado da tela do celular, a sua turma, Núcleo Formativo VI A, também comemorou. Quem disse que pedagogos se formam para guardar o canudo? Pedagogia é uma ciência viva. Tão viva que, em tempos de agruras e projetos de desmonte da educação, repagina-se e faz show de estudos participativos em ônibus superlotado – essas caixas de rodar que geram tantos lucros aos marsupiais do capitalismo desmedido.


Imagem de destaque: Roberto Parizotti/FotosPublicas

 

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