A liquefação da vida, da educação e dos direitos humanos

Alfredo Johnson Rodríguez 

“(…) Não estamos alegres, é certo,
mas também por que razão
haveríamos de ficar tristes?
O mar da história é agitado.
As ameaças e as guerras
havemos de atravessá-las,
rompê-las ao meio, cortando-as
como uma quilha corta as ondas”
– Vladimir Maiakovski

O tema da Pandemia do Coronavírus e a consequente configuração de uma avassaladora crise sanitária no Brasil, passaram a ocupar, nesta coluna e em outros veículos de comunicação científica, o centro dos mais recentes estudos e análises, especialmente no que tange aos impactos adversos dessa dramática condição contemporânea no processo educacional.

Como revelam os célebres versos de Maiakovski, reproduzidos na epígrafe, efetivamente, neste agitado mar da história, ameaças, guerras simbólicas, atitudes negacionistas e falácias, arquitetadas sistematicamente pelas elites conservadoras e despóticas e operadas por seus lacaios gestores governamentais, invadem nosso cotidiano e atentam contra os direitos humanos e as instituições democráticas, almejando o clímax do nefasto ideário neoliberal, a plena vigência da tirania do mercado e a privatização do Estado democrático de direito, em detrimento do desenvolvimento humano, justo e sustentável.

Recentemente, essa desumanizadora doutrina política vem assombrando a vida e a educação pública, especialmente das camadas sociais subalternas, na medida em que, ao avaliar, de forma frívola e inconsequente, a queda gradual e insegura dos indicadores de contaminação e óbitos causados pela Covid-19 e o incremento, ainda que muito lento, da população – parcial ou completamente – vacinada, os governos locais de certas jurisdições estaduais e municipais exercem desmedida pressão política para que, a qualquer custo, os/as profissionais da educação retomem o trabalho presencial em suas respectivas escolas e os/as estudantes retornem às aulas, organizados em “bolhas”, num ciclo aleatório de revezamento.

Essa volta forçada à escola, geralmente imposta via decretos arbitrários, constitui um frontal e deplorável atentado à vida e ao direito de viver bem, pois fatalmente ocorre:

  • apesar da desproteção dos/das discentes – ainda não imunizados/as – e da maioria dos trabalhadores da educação – parcialmente vacinados/as;
  • não obstante a inexistência de condições satisfatórias de biossegurança e de manuais com protocolos sanitários cientificamente consistentes confiáveis, exequíveis e coletivamente construídos e
  • malgrado a infraestrutura deficitária das unidades escolares, inaptas para atender as demandas de prevenção, proteção e integridade da vida dos atores educacionais.

Agravando ainda mais esse perigoso empreendimento institucional, os gestores, pretendendo uma inovação do ensino tradicional, preconizam a aplicação de um modelo metodológico, ainda experimental, denominado de “ensino híbrido” (blended learning). Esta nova modalidade educativa consiste, em linhas gerais, numa interseção equitativa entre aulas presenciais e aulas virtuais (online), valendo-se predominantemente das mais avançadas técnicas cibernéticas de informação e comunicação (TIC’s) e de sofisticados dispositivos eletrônicos, tendo em vista a formação de competências cognitivas e comportamentais dos/as educandos, supostamente aptos/as e instrumentalizados/as para performances educativas individualizadas e autônomas.

Lamentavelmente, à luz da realidade das escolas públicas e de seus usuários/as, esse experimento metodológico proposto é uma fantasia pedagógica e está fadado ao fracasso, uma vez que emerge num contexto de:

  • ausência de um projeto sólido de reorganização do tempo, do espaço e do trabalho escolares;
  • carência de condições e equipamentos imprescindíveis para sua operacionalização; 
  • desleixo institucional com a formação continuada dos/das educadores/as;
  • déficit do quadro de profissionais – docentes e técnico-administrativos e
  • a situação de empobrecimento e exclusão social da maioria do público-alvo da escola, impossibilitada do acesso à rede mundial de informação e comunicação virtual.

O pano de fundo de tais desatinos institucionais condensa a plena ativação de mecanismos destrutivos da realidade, que correspondem ao que o pensador polonês Zygmunt Bauman (2003) concebera como “liquefação”, no seio da modernidade tardia. Com efeito, os arautos do neoliberalismo e do despotismo primam pela desintegração da vida, da subjetividade, dos direitos e das instituições democráticas. Buscam liquefazer ou liquidificar tudo o que é sólido, justo, bom e belo, gerando desapego, provisoriedade, falta de segurança, de certeza e de garantia e acelerado o processo da individualização. A existência e as interações humanas, nessa lógica, exprimem uma crise do estatuto do real.

Sob a hegemonia das elites mercantilistas, o mundo da vida é colonizado pela racionalidade instrumental,  o genocídio impera, as interações de solidariedade humana são dissolvidas os/as educadores são suplantados pela tecnologia, a educação se desqualifica tonando-se mercadoria, o “ensino híbrido” se consubstancia como ensino líquido, o processo ensino/aprendizagem enseja relações de consumo, enfim, o direito a aprendizagem se derrete para dar passo à ignorância e a escola pública, esvaziada de sentido, justifica sua privatização.

Imersos nesse mórbido contexto, coletivos de educadores/as em diversos localidades do Brasil têm respondido lançando mão da “greve sanitária”, como recurso legal e legítimo para defender a vida, a integridade humana, os direitos e a qualidade social da educação pública, construindo trincheiras de resistência e lutando contra a violência e a liquefação da democracia. Desafortunadamente, cegos e obcecados pelos seus delírios reacionários, os gestores do neoliberalismo disseminam tiranicamente o medo e o terror, reprimindo, cassando e caluniando os protagonistas do bom combate. Mesmo assim, continua flamejante a chama da esperança de que, retomando Maiakovski, como uma quilha, na resistência e na luta, cortemos no meio as ondas da liquefação da realidade para, enfim, vivermos bem.

 

1 – Doutor em Ciências Humanas (FAFICH/UFMG). Pedagogo na rede pública municipal de educação e Professor da Faculdade Pitágoras – Betim/MG.

 

Para saber mais:

BAUMAN, Z. (2001). Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar. 

TFOUNI V, Fábio e SILVA DA, Nilce. “A modernidade líquida: o sujeito e a interface com a fantasia”, Ver. Mal-Estar e Subjetividade, v. 8, nº 1, Fortaleza, mar, 2008.


Imagem de destaque: ADUSB

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *