A História de Lázaro: O que a escola tem a ver com isso?

Luiz Carlos C. B. Rena

Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. (Artigo XI da DUDH, 1948)

“Tá lá o corpo estendido no chão, em vez de rosto, uma foto de um gol, em vez de reza, uma praga de alguém e um silêncio servindo de amém”

No caso de Lázaro Barbosa cravejado por 38 balas não houve “um silêncio servindo de amém” como canta João Bosco, o poeta de Ponte Nova. Ao contrário, as cenas que se seguiram à captura do homem perseguido, nos lembravam um final de campeonato. Machos devidamente paramentados para a guerra estampavam um sorriso no rosto e se abraçavam celebrando a vitória das forças de (in)segurança depois de jogar um corpo sem vida dentro de uma ambulância do SAMU. É no mínimo estranho ver o SAMU fazendo transporte de cadáver. Concordo com Malu Aires: “Não comemorem. A festa é dos assassinos.”

O homem branco engravatado, “cidadão de bem” por hora investido da autoridade do cargo de secretário da segurança pública bradou aliviado: “missão cumprida”. Não, Sr. Secretário!!! A missão dada a mais de duas centenas de policiais fortemente armados e muito bem equipados foi um fracasso porque terminou vinte dias depois com a execução de um homem. O senhor da necropolítica encastelado no Palácio do Planalto fez piada com a “presa abatida” e nas redes sociais celebrou mais um CPF cancelado. Como se não lhe bastasse os 516.100 CPFs cancelados pelo seu negacionismo e sua política de “imunidade de rebanho” no enfrentamento da Covid-19.    

Os órgãos de imprensa e outras mídias encarregadas de produzir a imagem de “serial killer” do sertão goiano rapidamente reverberaram os gritos da vitória dos pelotões desafiados pelo fugitivo que não se deixou alcançar tão facilmente. Uma vitória com gosto de vingança daquele que ousou afrontar as forças policiais, provocou desavenças entre governadores e preocupou até família imperial que está no poder. Era preciso utilizar esse caso para dar uma lição e reafirmar o poder das armas. Dos 120 tiros trinta e oito alcançaram o corpo de Lázaro e ao permitir o registro fotográfico do cadáver perfurado e a circulação das imagens essa intenção pedagógica ficou evidente.

O povo de Cocalzinho e Águas Lindas, convencido pelo discurso de ódio, que levou à invasão do território sagrado dos Terreiros, torcia pela prisão de Lázaro. O campo de guerra montado para enfrentar o perigosíssimo representante de forças das trevas contribuiu para aumentar o pânico de um povo acuado em suas casas. A notícia do fim da caçada trouxe o povo às ruas para festejar e agradecer os “heróis” que lhes devolveram a sensação de segurança e abraçaram a teoria do “justiçamento”, da justiça com as próprias mãos que nos devolve para o tempo da barbárie. A mãe aflita tentou convencer o filho a se entregar sem sucesso. A família não irá buscar o corpo de Lázaro. Não haverá velório e nem os rituais do sepultamento.

Diante de tudo isso é preciso repetir e responder a pergunta postada nas redes sociais pelo jovem filósofo Lucas Lamancusa Pereira: “Que mundo é esse que gestou Lázaro?”

Ninguém pode negar que Lázaro carregava uma história de delitos e crimes. É indiscutível que alguém assim deveria responder pelos seus crimes conforme previsto na lei. Não podemos esquecer as pessoas lesadas ou a dor das famílias alcançadas pelos atos de delinquência de Lázaro. Portanto, não se trata de fazer a defesa do mal-feito ou da ação criminosa. O que chama a atenção na história deste homem negro e pobre é a sentença definitiva da pena de morte, irrevogável e absolutamente a revelia do Estado de Direito. O Artigo XI da DUDH foi absolutamente pisoteado pelos agentes públicos neste caso. 

A pergunta do jovem filósofo nos coloca a pensar sobre as condicionantes que produziram esse personagem das páginas policiais. Só os ingênuos acreditam que o caminho da criminalidade seja fruto de uma escolha pessoal. Como se em determinado dia alguém despertasse pela manhã e dissesse prá si mesmo: hoje me transformarei num homem violento e criminoso. Só os racistas explicam toda essa trajetória de violência de um homem pela teoria genética. A naturalização do comportamento violento está na base do argumento que defende a eliminação do sujeito como única alternativa para assegurar segurança às comunidades.

Para quem está comprometido com a educação é impossível acolher este argumento. O determinismo biológico nos deixa de mãos atadas, imobilizados diante dos desafios inerentes à construção do sujeito. O que sustenta nossa ação como educadores e educadoras é justamente a convicção de que as subjetividades são produzidas nas relações com a cultura. Uma cultura que sabota projetos de vida já na infância, abortando sonhos de adolescentes desalentados não deveria se surpreender com personagens como Lázaro. Quantos Lázaros estão circulando entre nós à espera das circunstâncias para devolver o que aprendeu na escola da vida?

Teria Lázaro passado pela escola? Ou será que esse direito fundamental lhe foi negado? Não sabemos e talvez jamais teremos essa informação. 

A Escola seria uma das ferramentas fundamentais para oferecer ao sujeito os recursos cognitivos, emocionais e sociais necessários à sustentação de um projeto de vida que o integrasse na comunidade como cidadão que agregasse valor à vida em sociedade e não uma ameaça à vida. A execução de Lázaro e de tantos outros homens alcançados pelo “justiçamento” nos tira a oportunidade de escutá-los, resgatar suas trajetórias de vida buscando compreender os fatores, as condições sócio-históricas que os produziram. O antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997) já nos alertava a décadas atrás: “Se os governantes não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios”. Ou estabelecemos políticas robustas de acesso e manutenção de crianças e adolescentes às escolas ou veremos muitos Lázaros trilharem os caminhos da criminalidade e serem brutalmente executados. A escola sozinha não resolve o problema da criminalidade, mas é inegável que ela tem um papel chave na promoção de uma cultura de paz e de respeito aos Direitos Humanos. 

Em tempos de redes sociais onde crianças e adolescentes têm acesso às notícias em tempo real é impossível que Lázaro não se torne assunto na sala de aula. Caberá aos educadores e educadoras escutar os educandos(as), acolher as diferentes perspectivas e sentimentos que emergem dos fatos noticiados transformando tudo isso em conteúdo para uma boa conversa equilibrada, apoiada na ciência e na Constituição Federal sobre Direitos Humanos, sistema de justiça, segurança pública, fatores da criminalidade, Estado de Direito entre outras dimensões e aspectos fundamentais de uma sociedade que se quer civilizada e, sobretudo, cada vez mais humanizada.


Imagem de destaque: Fabio Lima

 

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