À esquerda no voto, à direita na escola: somos mesmo educadores progressistas?

Edilson da Silva Cruz

Ano eleitoral é um período importante para todos nós, cidadãos, que entendemos a importância de participar da vida democrática do país. Para nós, educadores e educadoras, é o momento de demonstrar, através de nosso voto, o compromisso que temos com o presente e o futuro de bebês, crianças, jovens e adultos que atendemos, nas quase 180 mil escolas de ensino básico do Brasil.

Sabemos, porém, que nem todos os que trabalham na educação compartilham de valores democráticos e republicanos. Há aquelas e aqueles que os negam de modo explícito, ao defender voto em presidente genocida, em projeto de país conservador, preconceituoso e autoritário. Sabemos quem são estes e tratamos de nos diferenciar, demarcar território, mostrar o quanto nos comprometemos com outro projeto de país, ao depositar nosso voto em candidaturas de esquerda ou centro-esquerda que, mesmo timidamente, assumem o compromisso com a justiça social, combate às desigualdades, à violência e a construção de uma nação soberana.

Ora, mas é isso que nos faz educadores progressistas: o voto que digitamos na urna eletrônica a cada dois anos? Não seria essa uma forma equivocada de nos definir? Afinal, em que somos “progressistas” no cotidiano escolar, na forma como exercemos o trabalho pedagógico e nos relacionamos com estudantes, pais, comunidade etc.?

Penso em algumas cenas cotidianas nas escolas públicas do Brasil. Professores convencidos de que sua autoridade advém da capacidade de ameaçar alunos com reprovação, daí o esforço em desqualificar qualquer política de minimização da repetência. Diretores de escola apegados a uma vivência do poder como mando e obediência, quando não abuso explícito e assédio moral. Conselhos de classe que, em tese, servem para avaliação dos estudantes (logo, do trabalho pedagógico da escola), mas que se transformam em espaços de desabafo contra algum bode expiatório: as “famílias desestruturadas”, os “alunos-problema” culpados pela “indisciplina”, o diretor da escola que não expulsa os indisciplinados etc. Ou a rotina de trabalho que negligencia o planejamento, a organização da aula, o diálogo com a realidade dos estudantes, a busca por metodologias capazes de ensinar e contribuir para a formação de sujeitos.

Pois bem. Tais posturas de educadores no interior das escolas não é exclusividade de “bolsonaristas”, direitistas ou conservadores liberais. Ao contrário, todas elas podem ser verificadas também em educadores que se intitulam progressistas, de esquerda, citam Paulo Freire, votam na esquerda no dia da eleição e, na sala dos professores ou outros ambientes da escola, enchem a boca para criticar o “sistema”, o capitalismo, a ordem social e as relações de poder. Eis a contradição mais chocante: nós, que votamos em candidatos progressistas nas eleições e trabalhamos na educação, também podemos ser profundamente conservadores no modo como realizamos nosso trabalho educativo. Enquanto contribuímos para um projeto de país democrático, em nível macro, inviabilizam-o em nível micro, ao não perceber ou mesmo ignorar a relação entre este projeto defendido nas urnas e a formação que oferecemos aos estudantes que atendemos.

Sejamos honestos: quantos alunos empurramos para futuros votos “bolsonaristas” e em candidatos conservadores, quando negligenciamos uma aula bem dada, quando negamos empatia diante de realidades sociais complexas, quando entendemos docência como superioridade moral e intelectual perante os estudantes? Quantos futuros entregues ao desespero individualista nós ajudamos a construir quando criamos uma barreira que nos impede de criar relações de autoridade com os estudantes baseadas no companheirismo, no diálogo, na abertura de possibilidades? Eis uma reflexão difícil, mas moralmente necessária, se queremos realmente contribuir com um futuro diferente do presente asfixiante que nos metemos.

Não somos nós, os educadores, os culpados pela situação da educação pública, tampouco somos responsáveis diretos pelos destinos perdidos de muitos de nossos alunos e alunas. E é assim porque não se trata de distribuir culpa ou crédito, mas de subverter a forma como entendemos as relações de poder no interior da escola e para além dela. Somos sujeitos de nosso trabalho, mesmo que o sistema educacional não nos pague bem ou o diretor da escola nos trate mal. Somos agentes de um trabalho de base emancipador, mesmo que nossa comunidade seja atingida por diferentes desigualdades ao mesmo tempo. A questão que temos de nos fazer é: qual a melhor maneira de subverter esse sistema econômico de morte (capitalista) e a estrutura educacional arcaica, considerando as relações microssociais da sala de aula, do cotidiano escolar? Seria nos voltando contra estudantes ou pais, eles que são, como nós, trabalhadores, pessoas que vendem sua força de trabalho em troca de um salário – na maioria das vezes – insuficiente para uma sobrevivência digna? Seria negligenciando possibilidades de formação profissional, de aprendizado diário, quando isto o que faz é aprofundar nosso fatalismo diante da realidade social? Seria entregando-nos a um corporativismo cego que nos coloca ao abrigo de qualquer contradição e autoavaliação?

O caminho a ser descoberto e trilhado por nós, que nos identificamos como educadores progressistas, cidadãos críticos, comprometidos com a justiça social e educacional, deve passar por uma profunda autocrítica. É ela que nos ajudará a perceber como contribuir com um futuro menos desigual, a partir de nosso presente, do lugar em que atuamos, das pessoas com quem nos relacionamos todos os dias. Que nossas respostas não sejam medrosas, mas cheias de coragem. Há muito o que se transformar.


Imagem de destaque:Galeria de imagens

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *