A escola doméstica e a democracia

Editorial da edição 318 do Jornal Pensar a Educação em Pauta

A emergência e expansão da escola pública que hoje conhecemos está vinculada às grandes transformações que, sobretudo na Europa dos séculos XVII e XVIII, presidiram a organização do mundo moderno. Nunca se pode esquecer que a expansão da escola ao longo dos últimos 250 anos está umbilicalmente ligada à necessidade do governo da população e, por isso, à educação das novas gerações para as regras políticas, econômicas, sociais e culturais que organizam a sociedade, sobretudo o espaço público.

Retirar a criança da casa, do ambiente doméstico de convívio com os seus, e lançá-la, paulatinamente, no espaço público e à convivência com os outros, é um imperativo que veio se estabelecendo face à necessidade crescente de, pelo menos formalmente, preparar as pessoas para a convívio democrático. Nas sociedades modernas, nos últimos 200 anos pelo menos, a instituição a quem foi dada a incumbência de fazer essa passagem da casa para a rua e, à medida do possível, preparar  para o trabalho e para a cidadania, é a escola. Sem a escola pública não existiria a democracia moderna, pelo menos da maneira como nós a concebemos e buscamos praticar.

Sabemos que há grandes problemas nos projetos e nas práticas democráticas no Brasil e no mundo, e que a escola pública nunca foi capaz de cumprir plenamente os desígnios que dela são esperados, inclusive porque ela sempre disputou a formação das novas gerações com outras instituições educativas como a família, o trabalho,  a igreja, a televisão e a internet. No entanto, a convivência, a socialização e os aprendizados escolares continuam sendo as únicas alternativas universalizadas, seguras e debatidas publicamente que conhecemos de uma formação para a democracia e o cuidado consigo, com demais pessoas e com o mundo.

Aceitar a defesa que hoje se faz de uma educação doméstica e nos estreitos marcos das crenças e critérios familiares é abrir mão de qualquer projeto democrática e de deliberação pública sobre os destinos coletivos. A aposta na privatização da educação é a exacerbação do individualismo, é o fim da democracia e a derrocada da possibilidade de que, juntas, juntes e juntos, podemos construir um mundo melhor para todas, todes e todos.

Não se trata, obviamente, tão somente da falta de deliberação pública sobre que conhecimentos, sensibilidades e valores as novas gerações devem ou não aprender para estarem aptas ao convívio coletivo. Trata-se, também, de uma proposta política claramente elitista e discriminadora de sucatear a escola pública e nela manter os filhos e filhas das camadas trabalhadoras – os filhos e as filhas dos “outros” – e criar um ambiente em que os filhos das camadas abastadas  possam, a salvo do convívio com “os bárbaros”, se preparar para dirigi-los e explorá-los.

Não é por acaso que a proposta de educação doméstica há muito acalentada por grupos elitistas e, em boa parte, fundamentalistas, que desprezam a democracia e a possibilidade de uma deliberação pública coletiva sobre os destinos do país, ganham força justamente num governo que despreza a vida e a convivência democrática. No fundo, de forma explícita ou implícita, os defensores da escola doméstica não creem que a democracia seja possível ou necessária já que acreditam que é o  mercado, deus e a ação individual heroica é que vão lhes salvar. Os “outros” e as “outras”, a gente manda trabalhar ou prende diriam alguns;  ou simplesmente esteriliza e extermina, dirigiam outros tantos.

Manter a escola pública acolhedora, diversa e com deliberações coletivas sobre projetos e práticas educativas e pedagógicas é um imperativo democrático. Mais do que isso, hoje, em boa parte do Brasil e do mundo, manter as escolas é defender a vida das crianças, adolescentes e jovens contra a violência de suas próprias famílias e  contra a sanha destrutiva do  mundo criado pelas gerações que os(as) precederam. É justamente porque tais gestos de generosidade e responsabilidade não  sensibilizam nem mobilizam os seguidores de um governo genocida como o que é realizado por Bolsonaro e sua camarilha, é que precisamos nos lembrar deles.


Imagem de destaque: Revista Fórum.

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A escola doméstica e a democracia

A emergência e expansão da escola pública que hoje conhecemos está vinculada às grandes transformações que, sobretudo na Europa dos séculos XVII e XVIII, presidiram a organização do mundo moderno. Nunca se pode esquecer que a expansão da escola ao longo dos últimos 250 anos está umbilicalmente ligada à necessidade do governo da população e, por isso, à educação das novas gerações para as regras políticas, econômicas, sociais e culturais que organizam a sociedade, sobretudo o espaço público. 

Retirar a criança da casa, do ambiente doméstico de convívio com os seus, e lançá-la, paulatinamente, no espaço público e à convivência com os outros, é um imperativo que veio se estabelecendo face à necessidade crescente de, pelo menos formalmente, preparar as pessoas para a convívio democrático. Nas sociedades modernas, nos últimos 200 anos pelo menos, a instituição a quem foi dada a incumbência de fazer essa passagem da casa para a rua e, à medida do possível, preparar  para o trabalho e para a cidadania, é a escola. Sem a escola pública não existiria a democracia moderna, pelo menos da maneira como nós a concebemos e buscamos praticar.

Sabemos que há grandes problemas nos projetos e nas práticas democráticas no Brasil e no mundo, e que a escola pública nunca foi capaz de cumprir plenamente os desígnios que dela são esperados, inclusive porque ela sempre disputou a formação das novas gerações com outras instituições educativas como a família, o trabalho,  a igreja, a televisão e a internet. No entanto, a convivência, a socialização e os aprendizados escolares continuam sendo as únicas alternativas universalizadas, seguras e debatidas publicamente que conhecemos de uma formação para a democracia e o cuidado consigo, com demais pessoas e com o mundo.

Aceitar a defesa que hoje se faz de uma educação doméstica e nos estreitos marcos das crenças e critérios familiares é abrir mão de qualquer projeto democrática e de deliberação pública sobre os destinos coletivos. A aposta na privatização da educação é a exacerbação do individualismo, é o fim da democracia e a derrocada da possibilidade de que, juntas, juntes e juntos, podemos construir um mundo melhor para todas, todes e todos.

Não se trata, obviamente, tão somente da falta de deliberação pública sobre que conhecimentos, sensibilidades e valores as novas gerações devem ou não aprender para estarem aptas ao convívio coletivo. Trata-se, também, de uma proposta política claramente elitista e discriminadora de sucatear a escola pública e nela manter os filhos e filhas das camadas trabalhadoras – os filhos e as filhas dos “outros” – e criar um ambiente em que os filhos das camadas abastadas  possam, a salvo do convívio com “os bárbaros”, se preparar para dirigi-los e explorá-los.

Não é por acaso que a proposta de educação doméstica há muito acalentada por grupos elitistas e, em boa parte, fundamentalistas, que desprezam a democracia e a possibilidade de uma deliberação pública coletiva sobre os destinos do país, ganham força justamente num governo que despreza a vida e a convivência democrática. No fundo, de forma explícita ou implícita, os defensores da escola doméstica não creem que a democracia seja possível ou necessária já que acreditam que é o  mercado, deus e a ação individual heroica é que vão lhes salvar. Os “outros” e as “outras”, a gente manda trabalhar ou prende diriam alguns;  ou simplesmente esteriliza e extermina, dirigiam outros tantos.

Manter a escola pública acolhedora, diversa e com deliberações coletivas sobre projetos e práticas educativas e pedagógicas é um imperativo democrático. Mais do que isso, hoje, em boa parte do Brasil e do mundo, manter as escolas é defender a vida das crianças, adolescentes e jovens contra a violência de suas próprias famílias e  contra a sanha destrutiva do  mundo criado pelas gerações que os(as) precederam. É justamente porque tais gestos de generosidade e responsabilidade não  sensibilizam nem mobilizam os seguidores de um governo genocida como o que é realizado por Bolsonaro e sua camarilha, é que precisamos nos lembrar deles. 


Imagem de destaque: Revista Fórum

 

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