Carlos André Martins Lopes*
No campo da história, historicidade significa que algo nasceu nesse mundo, é invenção humana, terrena, é uma construção. Há a historicidade da leitura de livros, sejam eles sagrados, científicos, literários ou filosóficos. Existe, a história aponta para isso, a historicidade da leitura da bíblia. Essa historicidade fez com que os homens, ao longo do tempo, interpretassem tal livro por diferentes vieses. Na Idade Média, tomaram a bíblia como base para justificar todo o tipo de violência. Cabe citar aqui, por exemplo, o Tribunal do Santo Ofício ou, simplesmente, Santa Inquisição, órgão criado pela igreja para torturar e matar “hereges”. Não raro, pessoas eram cremadas vivas em praças públicas. Esses fatos foram registrados em processos abertos contra os acusados. Esses processos foram amplamente estudados por historiadores chamados medievalistas, transformados em conhecimento e publicados em obras monumentais.
Outro evento histórico, também amplamente estudado por historiadores, foi o das cruzadas. Diante da tomada de Jerusalém pelos muçulmanos, o papa Urbano II convocou os cristãos piedosos a reconquistarem a cidade sagrada pela força das armas. O céu, então, foi prometido a todo aquele que usasse sua espada para derramar o sangue do infiel em nome do senhor. Viu-se, então, um espetáculo de fé. Racharam-se crânios de pessoas ao meio com golpes certeiros de espadas ou de machados; cortaram-se cabeças; promoveram-se massacres onde se suprimiam vidas de homens, mulheres e crianças. Esse movimento se chamava cruzadas devido ao símbolo cristão bordado nas armaduras dos piedosos guerreiros, a cruz. Segundo os leitores da bíblia da época, todos os atos dos guerreiros estavam devidamente respaldados na bíblia. E estava. Estava em parte, conforme pretendo mostrar.
Quando os hebreus, liderados por Moisés, saíram do Egito em direção à Palestina, receberam ordens expressas relativas à limpeza do terreno. Os povos que ocupavam a citada região deveriam ser removidos do lugar para que os escolhidos pudessem tomar posse. Mataram-se homens, mulheres e crianças; faziam-se prisioneiros e tomavam-se os despojos, incluindo mulheres; ocupavam-se cidades, tudo com ordens expressas de Moisés que, segundo a bíblia, falava pelo senhor. O livro de Números, cap. 31, fala de uma dessas conquistas.
Os Estados Unidos tiveram seu território ampliado até o pacífico por meio de guerras, ocupações e compras. Uma das consequências do processo de expansão foi o extermínio das nações indígenas. A ideologia que animou os colonos a expandirem-se foi a do “destino manifesto”, ideia segundo a qual os estadunidenses viam-se a si mesmos como um povo escolhido por Deus para ocuparem o território americano. Eles eram, portanto, os “hebreus da modernidade”, que deveriam limpar o terreno, eliminar o “gentil”e implantar uma “civilização” cristã para que a glória de Deus fosse manifestada. Essa ideologia foi claramente inspirada no antigo testamento. Em sua maioria, os colonos estadunidenses eram protestantes de origem calvinista.
Pergunto se esses episódios de extrema violência podem ser fundamentados na bíblia. Sim. Pelo menos em parte. Eles podem ser embasados nos livros do Antigo Testamento. Muitos desses livros são claros como um dia de sol quando legitimam a violência em dadas condições. Isso não vale, contudo, para os livros do “Novo Testamento”, especialmente, nos denominados quatro evangelhos, textos que narram episódios da vida de Jesus, bem como expõem as ideias desse personagem que deu origem ao cristianismo. Um dos episódios mais conhecidos de negação da violência por parte de Jesus é o que ocorreu na hora em que o Messias está sendo preso. Um dos que estavam presentes no momento sacou a espada e cortou a orelha do servo do sumo sacerdote. Jesus o repreendeu, mandando-o guardar a espada e advertindo-o: “todos os que lançarem mão da espada a espada morrerão” (Mat. 26: 52). Esse episódio foi narrado nos 4 evangelhos, mas essa advertência só está presente no livro de Matheus. Quanto à leitura desse episódio, não cabem malabarismos retóricos nesse discurso de rechaço à violência. Até porque todo o discurso de Jesus é pela paz, pelo amor ao próximo, pelo respeito. O discurso das bem-aventuranças, em Matheus cap. 5, mostra bem isso.
Por mais que as leituras sejam perpassadas pela historicidade, pelos contextos históricos, pelos dramas de cada época, não deve haver, contudo, um vale tudo da interpretação. Há modos de entender a bíblia que são sustentados pelos textos sagrados; existem interpretações, porém, que não encontram respaldo algum na bíblia. Nesse sentido, afirmo que a defesa da posse e do porte de armas por cristãos é totalmente insana, do ponto de vista bíblico. A lei do “Olho por olho, dente por dente” foi desautorizada por Jesus. Se isso está expresso de forma clara na bíblia, no Novo Testamento, por que tantos cristãos defendem uma solução primitiva, como a que reivindica a facilidade de aquisição de armas? Por que transformar em atração, pelo visto, principal, em um evento religioso (Marcha pra Jesus) a um “presidente” que, obstinadamente tem tentado facilitar a aquisição, a posse e o porte de armas? Diante de milhões de religiosos,esse indivíduo, o presidente da república, que aparenta ter uns cinco anos de idade, fez gestos de arminhas com as mãos, um dos símbolos de sua campanha presidencial, para delírio da multidão. Será que estão dando a Cézar o que é de Jesus, e, a este, o que é de Cézar?
Apesar de não me declarar religioso, defendo, incondicionalmente,a visão de Jesus. Isso não quer dizer que eu defenda criminoso. Quero dizer que a segurança das pessoas é dever do Estado. Pais de família não precisam virar assassinos para se defenderem.
*Mestre em história pela Universidade Federal de Campina Grande e Professor da rede pública de ensino do estado da Paraíba
Imagem de destaque: Carolina Antunes/PR
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