A aula de literatura e seu poder de transformação

Fernanda de Quadros Carvalho Mendonça

A literatura sempre foi, para mim, um escape, um portal para outra dimensão e, nos últimos anos, tornou-se meu abrigo. Na condição de professora, defendo também que ela pode transformar realidades. Por acreditar nisso, proponho-me, hoje, neste espaço, a fazer um relato sobre o seu poder transformador.

Quando estava no mestrado, no ano de 2018, resolvi cursar um componente na linha de literatura, diferente da minha linha de pesquisa, a de educação. Fiz essa escolha na esperança de ter um pouco de deleite, em decorrência das exigências e preocupações da vida acadêmica.

Ao chegar para a aula deste componente, encontrei uma sala cheia de mulheres. Todas nos animamos com a proposta da ementa do componente, ou seja, a união entre literatura feminina e teoria, com a possibilidade de construirmos reflexões sobre leituras feministas de textos literários. Seria uma disciplina em que conheceríamos a importância do Feminismo como uma escola do pensamento, no intuito de vermos o mundo por um novo ângulo. As aulas assistidas naqueles semestres foram riquíssimas em conhecimento, compartilhamento e união. Descobrimos escritoras incríveis. Para mim, uma dessas foi Conceição Evaristo. É importante ressaltar que, desde o dia em que a conheci, seus textos passaram a fazer parte de minha prática docente e sigo apresentando-a por onde ando, pois, nesse país em que poucos têm acesso à literatura, é missão do professor proporcionar esses encontros para seus alunos.

Foi na primeira aula do componente literatura que fui surpreendida com a leitura de Luamanda, conto da autora, do seu livro Olhos D’água – a conhecia como personalidade, mas não por sua escrita. Naquele dia, fui arrebatada pela leitura, pela personagem, pela professora!

Sempre gostei que lessem para mim, mesmo adulta. Naquele momento senti meus ouvidos se espicharem, meu corpo ficar em posição de total atenção, para conhecer a história daquela mulher. “Luamanda consertou o vestido no corpo observando por alguns instantes o colo e o pescoço. Não, sua pele não denunciava as quase cinco décadas que já havia vivido. As marcas no rosto, poucas, mesmo quando observadas de perto mentiam descaradamente sobre sua idade” (EVARISTO, 2016, p.59).  Conforme o excerto, o conto se inicia com a personagem Luamanda, em um primeiro momento, no auge de seus 50 anos, questionando o amor.

“Lua, Luamanda, companheira, mulher” (EVARISTO, 2016, p. 59) é revelada, aos poucos, pelo texto, através das suas relações amorosas com outros personagens, ao longo das cinco décadas de sua vida. Na narrativa de suas vivências amorosas, veremos também a descoberta do amor pela menina que ela foi; a descrição de um amor adolescente; do amor de mãe; de um amor entre mulheres; do amor por um homem mais jovem; do amor por um homem mais velho e do amor trágico.

Mendonça e Barbosa (2019, p. 856) ressaltam que Evaristo (2018) construiu uma personagem composta por, no mínimo, sete mulheres: a menina, a adolescente, a mãe, a bissexual, a madura, a companheira e a avó:  a “ Luamanda, a avó, mãe, amiga, companheira, amante, alma-menina no tempo” (EVARISTO, 2016, p. 63). Todas elas livres, donas dos seus corpos, dos seus desejos, sempre quebrando os modelos determinados pelo patriarcado do que é ser mulher. Luamanda, de acordo com Mendonça e Barbosa (2019, p. 856), é uma personagem “constituída por muitas, ela era única, feminina, livre, fora dos padrões normativos, de alma jovem e que vive a vida liberta, sempre atendendo seus desejos e amores. Dona de si”.

O conto, através das fases da vida de Luamanda, revela-nos uma diversidade de mulheres. Ouvir e conhecer essa história marcou meu percurso no componente e me acompanhou durante o semestre. Perguntas fervilhavam em minha cabeça todas as aulas: afinal, quem somos e quem podemos ser? O que nos liga, nos enlaça que por mais que sejamos diferentes ainda assim temos em comum?

Na posição sujeito mulher, a única resposta possível é a nossa luta. Não existe esta mulher que não esteja lutando para existir e/ou sobreviver, mesmo que não tenha conhecimento sobre temas como feminismo e igualdade de gênero. Esta, ainda assim, terá que se posicionar para existir, pois sofremos as consequências de uma sociedade patriarcal.

Na união da literatura com teoria literária, ao final do componente, entendi que necessitamos, mais que urgente, nos filiar a uma perspectiva mais atual do feminismo, o qual defende que somos muitas e distintas, porém, lutamos por uma causa comum: a igualdade de gêneros. Precisamos compreender que, embora tenhamos certeza de que somos diferentes, não precisamos ser desiguais.

Todos os dias nos recriamos, pois somos muitas Luamandas, somos inúmeras e precisamos de muita força para lutarmos pela igualdade de gênero sem a prescrição de como devemos ser, imposta diariamente pela sociedade em que estamos inseridas. Somos produtos de uma cultura, consequência, dentre outras coisas, do que dizem sobre nós.

O fato é que, verdadeiramente, quando mulheres se agrupam, se reconhecem na sua diversidade, tudo muda em volta. Acontece uma revolução. Talvez esse seja um dos maiores motivos para acreditarmos na necessidade de que todos conheçam o que é o feminismo hoje. Faço disso minha utopia, porque acredito, mais do que nunca, que a revolução será feminina e que salvaremos o mundo do ódio e do preconceito.

É sabido que a literatura brasileira, ao longo de sua trajetória, traçou determinados modelos de representação da mulher no imaginário da sociedade. Assim, precisamos dizermo-nos, reescrevermos a nossa história para ocuparmos nosso lugar e, unidas no amor, no compartilhamento, conscientes do poder da diversidade, galgaremos, degrau a degrau, a igualdade. E assim será.

 

Para saber mais:
EVARISTO, C. Luamanda. In: Olhos D’agua.1 ed. – Rio de Janeiro: Pallas: Fundação Biblioteca Nacional, 2016.

MENDONÇA, F. de Q. C.; BARBOSA, A. M. A. de. Luamanda e suas “Sete Faces”: um olhar sobre o conto “Luamanda” de Conceição Evaristo. Fólio – Revista de Letras, [S. l.], v. 11, n. 1, 2019.


Imagem de destaque: Galeria de Imagens

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