E não posso ser eu um transfeminista?

Cauê Assis de Moura

Escrevo atravessado por um misto de sensações que foi ler o livro Transfeminismo que integra a coleção Feminismos Plurais. Esta obra tem um papel fundamental de ampliar o debate acerca dos limites que circundam os feminismos e foi escrita por Leticia Nascimento, uma mulher travesti negra e gorda pela qual tenho grande admiração. Ao término da leitura, me senti instigado a escrever. Afinal, as boas leituras nos provocam. Por isso, quero falar das frestas, pensei em dizer janelas, mas são realmente frestas, estas aberturas estreitas, tortuosas, que a gente tem que espremer o corpo e ter muita maleabilidade para poder passar. 

Cada página que fui lendo, me conduziu mais e mais para uma fresta bem apertada e feita sob medida para que meu corpo não pudesse transpor. E ao me deparar com a citação: “[…] a historia do feminismo é intensamente marcada pelas lutas e resistências de mulheres cis, mulheres brancas, mulheres negras, travestis, transexuais, feministas socialistas, anti-imperialistas, mulheres lésbicas, mulheres latino-americanas, afro-ameríndias, indigenas, pessoas não binarias, pessoas queer” (NASCIMENTO, p. 47, 2021), me perguntei: e nós transhomens e pessoas transmasculinas? 

Continuei a leitura sem tirar esta indagação da minha mente e fui percebendo que ela foi se ampliando. Entendo que o feminismo reivindique “o reconhecimento da luta política e produção teórica de pessoas que vivenciam as opressões de gênero (cis)sexistas e que se revindicam dentro de uma performance de gênero de mulheridades e/ou feminilidades” (NASCIMENTO, p. 56, 2021), mas aposto e acredito em um transfeminismo que vá além desta demanda, que não seja apenas um “lugar de luta politica e produção intelectual compartilhada por pessoas que se autodefinem como mulheres, queers, travestis, mulheres transgeneras, mulheres transexuais, pessoas não binárias, travestis ou ainda de outros modos, como transviada ou bixa travesti.” (NASCIMENTO, p. 58, 2021). Em outras palavras, não compreendo que o transfeminismo consista apenas em ser “um movimento epistêmico e político feito por e para mulheres transexuais e travestis” (NASCIMENTO, p. 70, 2021).    

Desculpe o excesso de citações, mas foi preciso trazer a palavra no literal para não correr o risco de ser mal interpretado, pois foi a forma como estas palavras foram colocadas que proliferaram em mim uma série de interrogações.  Se eu entendi bem, o livro afirma que as sujeitas do transfeminismo são aquelas que performam as mulheridades e/ou feminilidades. E pergunto: será que ampliar a concepção de mulher para o conceito de mulheridades, problematizando assim a relação sexo-gênero e trazendo a noção de performance como definidora das sujeitas do transfeminismo, faz deste movimento uma luta plural?  Ou apenas segue gerando exclusões tal qual a parcela do feminismo que exclui as mulheres negras e os corpos desobedientes de gênero? Assim, tomo emprestada a frase que intitula a introdução do livro e pergunto: E não posso ser eu um transfeminista?

Pergunto porque como nos coloca o filósofo e transhomem Paul B. Preciado,  nós não pertencemos “à classe dominante, daqueles aos quais se atribui o gênero masculino no nascimento e que foram educados como membros da classe governante, àqueles a quem se concede o direito ou de quem se exige (e é uma chave interessante de análise) que exerça a soberania masculina” (PRECIADO, 2018). Em grande maioria, nós fomos educados enquanto corpos femininos, e isso nos possibilita ter uma outra forma de visualizar e vivenciar as questões que envolvem o sexismo, o machismo e o patriarcado. 

Então, continuo a indagar: porque pensar um transfeminismo que exclui nossa participação? Ou se o transfeminismo realmente tem em seu horizonte, o desejo de que “possamos romper criticamente com a compulsoriedade binária de que se é homem ou se é mulher” (NASCIMENTO p. 58, 2021), por que então definir apenas pessoas que performam feminilidades e/ou mulheridades como sujeitas?

Uma das primeiras elaborações teóricas sobre transfeminismo no Brasil foi realizada pela pesquisadora Jaqueline Gomes de Jesus, que o conceituou enquanto um movimento intelectual e político que “pode ser compreendido tanto como uma filosofia quanto como uma práxis acerca das identidades transgênero que visa a transformação dos feminismos” (JESUS; ALVES, 2010, p. 14). Assim, ela trouxe, desde o início, no bojo de sua elaboração, todas as pessoas transgêneras como sujeitas do transfeminismo, delineando inclusive, alguns pontos para a agenda política do movimento como “o direito dos homens transexuais à gestação e ao aborto seguros” (JESUS, 2014, p. 251), pautas que permanecem fundamentais para as discussões transfeministas e que devem ser protagonizadas principalmente por transhomens e pessoas transmasculinas. 

Penso que esse debate é fundamental e, nesse sentido, evidenciou que esta escrita é apenas o início de uma reflexão que pretendo ampliar, pois sinto que ela precisa ser feita. Nosso lugar nas discussões acerca dos feminismos e dos transfeminismos são frestas por onde, com um certo esforço, é possível vislumbrar outros horizontes. 

Sobre o autor 
Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), poeta, transhomem, integrante do Núcleo de Estudos em Diversidade e Politica (EDIS/UFAL), membro do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (FONATRANS) e Vice-presidente da Associação Cultural de Travestis e Transexuais de Alagoas (ACTTRANS).

Para saber mais
Esse texto foi extraído do ensaio de mesmo título publicado na Revista de Estudos Transviades, disponível aqui


Imagem de destaque: Galeria de Imagens.

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