Convite à leitura de Chronicas Errantes: Arbitriüm sagrado das sombras malditas, de Peterson Martins Araújo

Prof. Dr. Joachin de Melo Azevedo.

O romance Chronicas errantes: arbitriüm sagrado das sombras malditas, do prof. Peterson Araújo, é uma obra que chama a atenção, de imediato, pela riqueza gráfica cuidadosamente pensada não apenas para cativar o leitor dos tempos atuais, mas também como parte essencial de uma narrativa lúdica que entrelaça ficção, história e arte. O único livro que já li que se aproxima um pouco da proposta de retirar o leitor da sua zona de passividade contemplativa remete a uma série de aventuras, inspiradas no universo dos RPGs, chamadas de livros-jogos.

Do sagaz Frei Antônio, que muito me lembra a curiosidade investigativa do monge Guilherme de Baskerville, de O nome da Rosa, ao implacável pistoleiro Pinote, que disfarça suas atividades criminosas incorporando um inofensivo palhaço de circo de mamulengos, ao mesmo tempo em que ostenta um código de ética severo, justiceiro, os leitores podem ter certeza que encontrarão uma galeria de personagens intrigantes e envolventes. As Crônicas errantes, portanto, nos colocam diante de marginais, marginalizados, cangaceiros e outros bandidos que agem com mais honestidade e princípios do que autoridades oficialmente constituídas como policiais, políticos, coronéis e clérigos. Em se tratando de ficção, esse é um mecanismo de denúncia social dos mais refinados.

Outro ponto bastante interessante deste romance é a sua vocação transmidiática. A bricolagem do enredo ficcional com a história em quadrinhos que recria episódios ligados ao Novo Testamento, como a traição de Judas, faz com que a maioria dos leitores, em se tratando principalmente dos mais experientes, reencontrem a arte sequencial dos quadrinhos. Digo isso porque grande parte de leitores exigentes já tiveram contato, mesmo que nas suas fases iniciais de letramento, com esse universo artístico. Os quadrinhos que já foram injustamente taxados por críticos literários como uma forma de “paraliteratura”, ou seja: um gênero literário menor, são colocados em cena como parte de um mosaico maior que cabe ao leitor ir montando, desvendando suas mensagens e ir compreendendo sua conexão com o enredo principal.

É um romance esteticamente ousado na medida em que se vale dos chamados efeito no real ou efeito de realidade para alterar a forma como o leitor percebe o mundo que vivemos. Quer dizer, a partir de ligações hipotéticas construídas no enredo com fatos históricos concretos e pesquisa arquivística, Chronicas errantes consegue realmente entrelaçar fatos e ficção. De uma maneira mais simples, é evidente que qualquer ligação entre os cangaceiros e os templários só pode ser considerada no plano artístico. É a imaginação criativa do autor que trabalha no sentido de sustentar esse elo. Já a simpatia do governo de Getúlio Vargas e da imprensa brasileira, durante o Estado Novo, pelo vulto autoritário e totalitário de Adolf Hitler é comprovada historicamente por meio de inúmeras fontes documentais e estudos acadêmicos sérios. Assim também como são perfeitamente verossímeis as descrições sobre os hábitos e a vaidade excessiva de Lampião, rei do cangaço, além da notória crueldade com a qual tratava seus inimigos. E todo esse percurso que envolve, sim, tempo dedicado para a pesquisa erudita é compartilhado com o leitor por meio de outro recurso próprio da pesquisa acadêmica que são as notas de rodapé e as citações diretas de especialistas ou documentos que se relacionam com a história não só do banditismo social no Nordeste, mas também de  grupos indígenas, políticos e dos grandes contrastes entre litoral e sertão em nossa região.

De todo modo, afirmo que Chronicas Errantes pode ser usada também, enquanto obra de ficção, como um ótimo material para enriquecer cursos e debates sobre produção e crítica literária. Isso porque o autor deixou explícito, em notas de rodapé e links midiáticos para vídeos, sons e imagens, todo o percurso de investigações bibliográficas e documentais que realizou para que o romance tenha uma ambientação histórica verossímil, ao passo que seus desfechos fantásticos seguem o fluxo livre e imaginativo da criação artística. Bom exemplo disso é o episódio em que temos a conversão de um bandoleiro para a ordem dos templários em meio a uma viagem de trem pelo semiárido nordestino. Tensão entre a narrativa, porque a situação que envolve os personagens vai ficando imprevisível e a história, na medida em que esse trecho captou muito bem a alta carga simbólica que as ferrovias e locomotivas possuíam no início do século XX enquanto elementos da modernização do país.

Esse realismo moldado a partir da arte convida o leitor para uma forma lúdica de se aprender história também. O desafio do grande romancista francês Balzac, feito no século XIX, para os historiadores ao escrever a monumental coleção de romances intitulada A comédia humana, partiu da premissa de que literatura e história estão fortemente entrelaçadas e não apartadas. Perspectiva essa que as Chronicas Errantes oferecem uma excelente contribuição.


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