Os ataques da mídia aos estudantes de humanas e as eleições de 2018

Carlos André Martins Lopes 

Houve uma greve geral na USP (Universidade de São Paulo) em 2013. Os estudantes chegaram a ocupar – ou invadir, conforme a visão do veículo que noticiava o ocorrido – o prédio da reitoria. Seguiram-se tentativas de negociação e até ameaças de reintegração de posse.

Não queremos falar, todavia, dos motivos da greve e nem tão pouco das respostas das autoridades a ela. Também não nos interessa o desfecho desse movimento grevista. Importa-nos pensar como telejornais montaram enredos com palavras e imagens em torno do movimento. Queremos falar, assim, de práticas de produção e de apropriação da palavra.

As palavras, nos dizeres de Larrosa, têm poder e força. Podemos fazer coisas com elas assim como elas podem fazer conosco. Com elas damos sentido ao que somos e ao que nos acontece. É com as palavras que correlacionamos as coisas, que nomeamos o que vemos e sentimos e como vemos e sentimos.

Falar sobre o uso da palavra é procurar entender por que o mundo se apresenta com determinadas características em dado contexto histórico. É preciso estudar a forma como as palavras são postas em funcionamento para se compreender não só como o mundo é fabricado, mas, sobretudo, quem o fabrica e para que finalidade.

A greve de 2013 foi ampla e intensamente noticiada. Redes de televisão interrompiam com frequência sua programação para atualizar os telespectadores acerca dos episódios mais recentes envolvendo o movimento. À noite, os telejornais dedicavam significativo espaço ao evento grevista, traçando um breve quadro histórico e fazendo várias chamadas ao vivo.

Nessas chamadas havia um investimento maciço na produção de significados. Nelas narravam-se o ambiente, os sujeitos e as ações. Os locais das reportagens eram as proximidades dos Centros de Humanidades; os sujeitos eram grupos de estudantes de história e de geografia; as ações desses sujeitos consistiam na prática do consumo de drogas nas imediações dos referidos Centros.

As reportagens enunciavam discursos para uma sociedade conservadora, e fazia parecer que a greve estava sendo efetivada apenas por um grupo de indivíduos que fumava maconha nos arredores da Universidade. Tentava-se, com isso, diante de uma sociedade conservadora, deslegitimar o movimento grevista, ao associá-lo apenas a esse grupo de indivíduos.  Mais do que isso. Os sujeitos que supostamente consumiam drogas não eram quaisquer sujeitos. Era um grupo de indivíduos específicos, sistematicamente nomeados. Esses personagens eram estudantes de história e de geografia. Havia, portanto, mais do que uma tentativa de minar a legitimidade da greve. Existia um ataque maciço à figura dos estudantes dos cursos de história e de geografia.

As palavras correlacionam coisas, diz Larrosa. Elas estabelecem associações. Nesse caso, a de que os Centros de Humanidades estão povoados por gente “drogada” e que, por extensão, os estudantes de história e de geografia são todos consumidores de drogas. Tendo em vista o capital social detido pelo telejornal, é essa a imagem que a sociedade passa a ter não só do estudante que cursa história, geografia, sociologia, filosofia, mas a do próprio profissional que atua num desses campos do saber.

Foi por essa época também que se proliferaram discursos pelo universo virtual que tomavam como objeto assuntos dos campos da história, da filosofia, da sociologia. Historiadores, filósofos, sociólogos, têm que disputar, então, os conhecimentos dos seus próprios campos de estudo com sujeitos cuja credencial é apenas a popularidade nas redes sociais e a habilidade de mobilizar exércitos virtuais para deslegitimar os conhecimentos dos campos das ciências humanas e sociais. As teorias conspiracionistas e os revisionismos históricos ganham cidadania.

Em 2014, um candidato à presidência da república investia incansavelmente contra a memória dos brasileiros. Os trabalhadores deveriam esquecer que viviam num país que escravizou seres humanos por mais de 300 anos. Deveríamos também tirar da memória o fato de que este país manteve no cativeiro uma imensa população, mesmo depois da emancipação política em relação à metrópole portuguesa, e que criamos mecanismos para garantir que camponeses pobres não tivessem acesso à terra.

Um romancista certa vez falou que a ficção é uma das melhores formas de se dizer a verdade. O romance “Moleque Ricardo” parece ser um desses casos. O enredo se passa na década de 1920. O “Moleque Ricardo” é um menino negro que trabalha das primeiras claridades do dia até o escurecer, no engenho Santa Rosa. Trabalha tão somente pela comida.

Um dia Ricardo foge do engenho e vai para Recife. Encontra trabalho nesta cidade, mas sua jornada é tão extensa quanto a do Santa Rosa. Além disso, seu salário não dá para ele se alimentar. Em momentos de devaneios, Ricardo pensa se não seria melhor se voltasse para o engenho. Pensa nas consequências, caso retornasse. Levaria uma surra do “coronel” pela fuga, mas depois o dono do Santa Rosa esqueceria tudo e ele voltaria ao que era antes. Trabalharia de sol a sol, mas pelo menos não passaria fome.

Esse romance narra um Brasil que faz o negro trabalhar apenas pelo alimento. País que 30 anos depois do fim da escravidão ainda tratava o negro/trabalhador rural como propriedade. Uma breve incursão pela história do país deveria ser, portanto, suficiente para rejeitarmos todas as promessas sedutoras de certas elites brasileiras.

Não foi por acaso que investiram, em 2013, na associação do estudante e do profissional das ciências humanas ao consumo de drogas. Era necessário destruir a credibilidade desses sujeitos. Os ataques produziram efeitos. O saber histórico, sistematicamente produzido, passou a ter que disputar espaço com narrativas fantasiosas, com distorções de toda a espécie.

A associação dos profissionais das ciências humanas às drogas parece ter aberto o caminho para uma série de medidas amargas para a população. Parece ter preparado o terreno para que dissessem em 2018: esqueça a história. Esquecemos. O autor da frase tornou-se presidente do Brasil.


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