Liberalismo, autoritarismo e cidadania na China

Antonio Carlos Will Ludwig

Para avançar no exame do tema em pauta parece conveniente, de início, expor um entendimento a respeito desses três termos. Em relação ao autoritarismo é possível concebê-lo como um regime que acentua a autoridade do governo e centraliza o poder político nas mãos de uma só pessoa ou determinado órgão constituído por um pequeno grupo de indivíduos, e coloca em posição subalterna as instituições representativas. Quanto à cidadania, pode ser dito que ela diz respeito a uma relação dos indivíduos com o Estado baseada em direitos e deveres.

Vale lembrar que o binômio direitos e deveres é um mote do liberalismo. Com efeito, sua versão tradicional e originária concede valor à cidadania a qual é vista como um título concedido às pessoas e que sacramenta um liame entre elas e o aparelho estatal. Outra característica marcante desta concepção se refere à ênfase posta no individualismo, isto é, na ideia de ser humano como um ente solitário, fechado em si mesmo, enclausurado em sua subjetividade, cujos interesses e aspirações devem ser colocados acima de tudo, um vivente dotado de autonomia plena que não pode sofrer qualquer tipo de coação.

Ainda segundo o liberalismo a igualdade social não pode ser buscada porque destrói a liberdade de cada um. Em termos econômicos, cabe ao Estado assegurar a autonomia do mercado. Sua interferência é admitida apenas para defender os seus interesses, sem promover a instauração de um sistema econômico por ele comandado. Quanto à política, a preferência recai na democracia representativa em detrimento da participativa.

Este liberalismo clássico emergiu no desenvolvimento histórico da China a partir da fundação da república em 1912. No decorrer dos anos foram feitas traduções e divulgadas as obras de Mill, Spencer, Kant, e Rousseau dentre outros, cujos preceitos liberais aí contidos causaram uma aceitação inicial entre os chineses, particularmente o constitucionalismo e a tripartição do poder. Posteriormente surgiram intelectuais sínicos nas décadas que se seguiram os quais escreveram sobre o liberalismo. Manifestações favoráveis a ele também surgiram, tais como o Movimento da Nova Cultura e o Movimento Quatro de Maio.

Apesar desse avanço, ele sofreu diversos abalos causados pelo enfrentamento do militarismo japonês e a repercussão do movimento comunista. Em consequência, na década de trinta, muitos chineses começaram a forjar a crença de que somente doutrinas radicais assentadas no autoritarismo poderiam resguardar a nação. Assim sendo, o liberalismo foi perdendo força e passou a ser visto como uma concepção censuradora dos regimes autoritários de qualquer tipo. Nos anos quarenta com a instauração da República Popular estabeleceu-se a crença de que ele representava uma ilusória criação burguesa capaz de produzir o enfraquecimento do país.

Após o falecimento de Mao, o liberalismo começou a emergir novamente. De fato, os preceitos relativos à separação dos poderes, ao estado de direito, à sociedade civil e à liberdade de expressão voltaram a circular no âmbito social devido às assolações ocorridas sob o comando do partido comunista. Nesta emergência muitas pessoas, particularmente as mais jovens, passaram a se interessar por ele, bem como seguidores do humanismo marxista buscaram aproximação. A compreensão atual é de que o liberalismo se mostra claro no setor econômico. Embora ele seja singular e distinto pela forte presença do Estado, o mesmo aparece como um inequívoco sistema capitalista, o mais exitoso da atualidade.

Na esfera política o liberalismo não conseguiu se impregnar. Com efeito, desde há muito tempo a China ostenta um regime autoritário. De acordo com informações recentes não há sufrágio universal, alternância partidária, liberdade de expressão e acesso irrestrito à internet. Inexistem sindicatos livres, judiciário independente e igualdade real perante a lei. Por sua vez, o Estado não pratica a tolerância religiosa e costuma empregar a repressão. À população são assegurados apenas os direitos de estudar, trabalhar e viajar.

Outrossim, cabe ressaltar que no confronto entre os princípios da autonomia individual do liberalismo e da igualdade social preconizada pelo Partido Comunista a liderança do país optou por este. Graças a tal escolha a China continua se apresentando como o país que mais tem retirado pessoas da situação de pobreza nos últimos anos. Isto tem sido possível porque o Estado é rápido e eficiente ao tomar decisões, faz um planejamento de longo prazo e preza a estabilidade e a segurança. Segundo autoridades governamentais, o modelo democrático liberal próprio do ocidente, não estimula o aparecimento de dirigentes dotados de elevada competência e produz deliberações que desperdiçam muito tempo por causa dos impasses e dos interesses divergentes.

Como pode ser percebido, a vigência do regime autoritário tem contribuído muito para a manutenção da grande maioria dos chineses como pessoas politicamente apáticas. De acordo com a tipologia estabelecida eles se mostram como cidadãos passivos, ou seja, como indivíduos que preferem ser governados, que se voltam para a esfera privada a qual inclui o exercício do trabalho e da vida familiar. Tal modo de se comportar é muito prezado pelos integrantes da cúpula do Partido Comunista que não desejam de forma alguma que a ordem e a lei sejam afrontadas.

Entretanto, o sufoco absoluto da doutrina liberal não aconteceu, e algumas ocorrências são provas disso. Uma delas foi a manifestação na Praça da Paz Celestial nos anos oitenta a favor da liberdade de imprensa, da democratização do Partido Comunista e do combate à corrupção. Outra se refere ao movimento que aconteceu entre 2019 e 2020 em Hong Kong devido às crescentes ameaças às liberdades políticas, especialmente em torno do projeto de lei de extradição proposto pelo governo. A terceira diz respeito à atual e bem sucedida administração de algumas vilas urbanas localizadas nas cidades de Guangzhou, Wuhan e Shenyang por parte dos próprios aldeões que nela residem. Tais exemplos revelam que há um número significativo de chineses tipificados como cidadãos ativos, isto é, habitantes locais que se consideram governantes, que almejam dirigir os dirigentes, que pretendem por meios diversos influenciar as decisões políticas impactantes da vida em sociedade.


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