Histórias das formigas: diálogos do re-existir 

Marcelo Silva de Souza Ribeiro

Outro dia, ao colocar meu caiaque no suporte de teto do carro, começou a escorrer uma água escura e com um cheiro bem particular. Fui descobrir posteriormente que havia uma fissura próximo a popa da embarcação, mas isso é uma outra história. A questão é que essa água escurecida e com um cheiro de madeira caiu no capô do carro e adentrou em todas as frestas. Na verdade, havia um formigueiro no interior do caiaque e aquela água vazando carregara o odor da família das formigas. O resultado é que o meu carro passou a ser morada de formigas, mesmo eu lavando, passando produtos, etc. Ainda hoje uma formiga ou outra passeia sorrateiramente no para-brisa.

De irritado passei a admirar aqueles insetos, que mesmo passando por todas as agruras na morada do caiaque e do carro resistiam – re-existiam. Fiquei até pensando se o ser humano seria capaz de suportar tantas intempéries, quase como as catástrofes que antecedem um fim de mundo.

A admiração (ad – mira – ação) parece que é mesmo uma das aberturas para o diálogo, para os sentidos e para uma consequente reflexão. Não que eu ficasse batendo papo com as formigas, mas o diálogo é essa produção de sentidos que só é possível em algum nível de relação.

Desse “diálogo”, produção de sentidos e reflexão, compreendi, ainda que óbvio (dizem que o óbvio às vezes é difícil de enxergar porque está bem na “ponta do nosso nariz”) que aquelas formigas tinham como profundo instinto o cheiro que marcava a sua família. Não sou especialista em Família Formicidae, mas essa questão do cheiro sugeria que elas identificaram o meu carro como uma nova morada, uma vez que a água escura e com o odor característico adentrara tudo. Esse instinto era tão forte que elas resistiam ao ponto, inclusive, de levá-las à extinção. Afinal, elas poderiam migrar para qualquer outro lugar, mas não! Essa capacidade admirável de re-existir era ao mesmo tempo a vulnerabilidade, pois estavam presas ao cheiro.

Mas e nós, humanos? Afinal temos a capacidade de pensar (certo de que não é exclusivo da nossa espécie), de um pensar humano complexo graças à abertura do organismo, e que é mais explicitada pelo cérebro. Somos seres abertos, seres dos devires… Ainda assim, instintuais, mesmo que marcados por um instinto mais recente e suscetível a erros, como diria Nietzsche. Somos seres pensantes. Contudo, estaríamos nós presos a alguma coisa que nos indica levar à extinção como que incapazes de mudar? Ao estarmos presos (e parece que estamos presos ao modo de vida que nos conduz à destruição da atual biodiversidade do planeta), lançamos mão do pensar?

Particularmente, aposto que esse pensar humano é característico do nosso ajustamento criativo, coisa de seres abertos. E se não há ajustamento criativo e se estamos presos a um modo que nos leva à destruição é porque nos falta algo do pensar profundo e conectado, que é um pensar fundado na experiência e fruto integração entre vivências e reflexões.

De igual modo não vejo problema nesse “instituto do cheiro” das formigas. Esse instinto é saber milenar, oriundo de uma inteligente evolução. Talvez as mudanças sejam tão abruptas na existência daquela família de formigas que o desequilíbrio e a ameaça de extinção não sejam um “problema” do seu instinto.

O que podemos aprender com essa história das formigas? O que nos prende? Como nos prendemos? O que pode nos levar à extinção? É possível criar novos ajustamentos criativos e buscarmos, pela via de um pensar profundo e conectado, novas formas de re-existir?

Sobre o autor
Dr. em Educação. Professor do Colegiado de Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf). E-mail: marcelo.ribeiro@univasf.edu.br


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