Ofensivas antigênero e o desenvolvimento de competências socioemocionais no espaço escolar

Aline Rocha Bezerra

Trabalho como psicóloga educacional em uma instituição federal de ensino onde há uma grande procura por atendimentos psicológicos, a maioria por conta de sintomas depressivos e de ansiedade, algumas vezes acompanhados por comportamentos autolesivos e ideação suicida. O desafio cotidiano de muitas psicólogas inseridas no espaço escolar tem sido tentar tirar o foco da resolução individualizada dos problemas e da mudança de comportamento, ao mesmo tempo em que buscamos chamar a atenção para os marcadores sociais que atravessam os sujeitos e a instituição e para a importância de construirmos uma política de promoção de saúde com trabalho interdisciplinar e intersetorial.

Muito desse sofrimento psíquico está relacionado às condições sociais, desigualdades raciais, às atribuições de gênero e as pressões sociais para exercê-las, ao capacitismo, às violências sofridas dentro das famílias. Assim, letramentos relacionados às formas de opressão a partir de marcadores sociais da diferença e suas articulações, tais como: raça, etnia, gênero, classe social, territorialidade deficiência, bem como a construção de perspectivas que quebrem pactos coloniais, fraturem os processos de socialização machistas, homofóbicos, racistas, a que somos submetidas/os, são muito importantes na busca por novos arranjos e articulações para uma vida com bem-estar.

No entanto, nos últimos anos, o governo federal tem apresentado diversas propostas legislativas contrárias ao debate sobre gênero e sexualidade no sistema educacional do país, inclusive com a ideologia antigênero como um traço forte da política de Estado. Houve a exclusão dos termos gênero e sexualidade das diretrizes políticas finais do Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024, mantendo-se a recomendação de que o debate sobre estes conteúdos fosse remetido para decisões dos legislativos estaduais e municipais. Outros projetos como o “homeschooling” (educação domiciliar), cujo texto-base foi aprovado pela Câmara no dia 18 de maio de 2022, e as Escolas Cívico-Militares também seriam uma forma de os pais blindarem seus filhos de supostas ideologias transmitidas nas escolas. Desse modo, com várias ramificações e manifestações, as ofensivas antigênero têm ativado camadas profundas de conservadorismo e suscitado sentimentos de desconforto e temor à diferença, como alerta a ativista feminista e pesquisadora Sonia Corrêa.

Durante a disciplina Gênero e Psicologia, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC, discutimos o fato de que concomitante a este projeto político, têm-se implementado o chamado desenvolvimento das habilidades socioemocionais nas instituições escolares, mencionadas nas dez competências gerais da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Preocupa-nos os efeitos de tal “troca”. A emergência das competências socioemocionais no discurso educacional talvez corresponda a mais uma tentativa de normalização dos comportamentos, como reflete Ana Laura Godinho Lima, professora da Faculdade de Educação da USP.

Tendo em vista que vivemos no contexto de uma forte cultura psicológica, em que as técnicas da Medicina e da Psicologia ultrapassam o recorte do normal e do patológico em direção a um processo de “otimização” de si permanente, conforme aponta Castel, a ênfase nas competências socioemocionais vai ao encontro do processo de psicologização crescente da existência humana, em que as emoções são vistas como privadas e não como socialmente organizadas, como destaca Sara Ahmed no livro The Cultural Politics of Emotion.

Ao invés de programas de desenvolvimento das competências socioemocionais que prescrevem soluções e classificações, o que talvez professores/as e estudantes precisem é de tempo e espaço para dialogarem sobre suas questões, seus sofrimentos, suas emoções. A promoção do bem-estar psíquico acontece também com o combate à fome, ao desemprego, às opressões sistemáticas de raça, gênero, sexualidade, ao produtivismo capacitista que exige um desempenho de excelência dos/as professores e estudantes. Embora o sofrimento faça parte da condição e experiência humana, isso não significa que as condições sociais que produzem e intensificam o sofrimento não possam ser superadas, o que requer diálogos e ações coletivas que busquem a consolidação de direitos na relação com o Estado, e um modo não prescritivo, naturalizante, de lidar com as emoções.

 

Sobre a autora
Aline Rocha Bezerra. Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Trabalha como Psicóloga no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí. Participa como estudante do grupo de pesquisa MARGENS: modos de vida, família e relações de gênero. E-mail: alinerochasj@hotmail.com

 

Para saber mais
AHMED, Sara. The cultural politics of emotion. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2004.

CASTEL, Robert. A gestão dos riscos: da antipsiquiatria à pós-psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987.


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