Sobre a legitimidade da universidade pública

Ana Katia Alves dos Santos

A universidade pública brasileira, da forma como a conhecemos hoje, é um projeto recente e data das primeiras décadas do século XX. Sendo assim, a sua legitimidade parece ser motivo de esclarecimento, afinal é um projeto em desenvolvimento e que, portanto, não chegou ao ápice de realização, muito menos pode findar-se dada a sua importância no cumprimento do maior papel que lhe é atribuído, que é o de contribuir com a edificação de um projeto de desenvolvimento nacional, visando crescimento econômico e transformação social a partir de várias frentes de produção do conhecimento, a saber, a científica, a tecnológica e a formativa (profissional e formação geral). 

Os processos de desenvolvimento de uma nação, em especial a política que a estrutura, não podem negligenciar o expressivo papel que a universidade pública exerce para tal. Um país responsável sustenta-se na produção da ciência, do ensino, das tecnologias, da relação íntima com as comunidades (extensão) e na valorização do povo que o constitui em sua diversidade étnico-racial, de gênero, intelectual e em sua força de trabalho, para garantia de equidade. 

A universidade é, portanto, como primeiro esclarecimento, um lugar de reafirmação de direitos, de redução de desigualdades, sendo um patrimônio inviolável e um bem público e, como tal, manifesta benefícios para a coletividade além de guardar e difundir a herança cultural para as gerações presentes e futuras, em especial para a juventude, esta que deve movimentar o debate político a fim de reivindicar o direito de existência e legitimidade da universidade, negando argumentos que lançam dúvidas sobre a sua tarefa enquanto força contributiva especial para a construção do projeto nacional, esta que deveria ser mínima e subserviente às regras do mercado, demonstrando ‘eficiência e eficácia’, validando fundamentos de uma razão instrumental (Max Horkheimer). Mercado, aliás, em constante crise e instabilidade, características que sugerem diferenciação efetiva do projeto da universidade pública e sua dimensão democrática, visto que o mesmo é de longa duração e representa a solidez necessária para garantir desenvolvimento do país necessitando, portanto, se ‘desmercantilizar’ (Boaventura Santos) e se fortalecer como órgão de Estado, e não de governo, a fim de reduzir exposição à lógicas de governos mercantis. 

A universidade é lugar socialmente referendado com direito à existência política plena, representada como intra-espaço que se estabelece como relação (Hannah Arendt) entre os ‘homens’ e a sociedade em sua diferença e diversidade. Política é a convivência entre os diferentes (Ibdem), sendo um modo comum de organizar a vida coletiva com vistas ao seu pleno desenvolvimento. 

Sendo assim, o segundo esclarecimento diz respeito à tese de que a universidade se edifica na diversidade. Seria a unidade na diversidade, ou seja, a universidade pública é um ‘complexus’ (Edgar Morin), um corpo tecido de conhecimentos, sujeitos e lógicas, às vezes conflitivas, que encontra, ainda assim, sustentação comum. É um modo de habitar (Heidegger) ‘singular’ que reúne os jovens, os docentes-pesquisadores-extensionistas, servidores técnico-administrativos articulados em uma ‘produtividade’ comum, qualificada na formação humana-profissional-científica-comunitária. É também o lugar que aponta para o perigo de uma única história (Ngozi Adichie), ou seja, é lugar que valoriza ações e pensamentos diversos buscando fortalecer espaço comum edificado na diferença e, também na narrativa das ‘minorias’, incluindo a todos/as. 

Nesse sentido, nunca antes a universidade pública representou tanto. Ela pode fazer avançar o país, através dos seus modos crítico-produtivos, encurtando as desigualdades de ‘raízes’ profundas da sociedade brasileira. Desigualdades que foram sendo encurtadas, por exemplo, por meio de um dos maiores programas de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) e que elaborou as condições (2007) de ampliação para oferta de vagas no ensino superior público. No entanto, a expansão das 69 universidades federais é tema delicado, dada a situação atual de cortes orçamentários que vêm afetando o funcionamento pleno das suas atividades. Um outro ponto de atenção diz respeito à revisão da lei de cotas (2022), fato que reacende o debate sobre equidade, redução das desigualdades raciais e sociais no Brasil e o papel das universidades, em seu compromisso social. As cotas contribuem com a redução da gritante discriminação (Kabengele Munanga) fundamentalmente racial no país. 

Enfim, cabe a todos/as nós, como presenças críticas, reafirmar a legitimidade e a importância da universidade pública como modo de redução das desigualdades sociais e caminho de desenvolvimento de um projeto nacional fundamentado na ciência, na valorização das artes, da cultura e da uma formação ampla que inclua o conhecimento tecnológico, ecológico, profissional e humanista, como dever e como sentimento de esperança na reconstrução de uma sociedade justa, equitativa, livre (Paulo Freire), plural e que reafirma o direito à educação superior de qualidade, gratuita, laica e democrática (Anísio Teixeira).

 

1 – Professora da Faculdade de Educação da UFBA. Drª. em Educação UFBA/ Pós-doc UMinho. Pedagoga e Especialista em Metodologia do Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação. Contato: aksantos@ufba.br.


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