Exigências do pensamento no tempo presente

Alexandre Fernandez Vaz

Sobre O primado do corpo a partir da filosofia de Theodor W. Adorno, de Thiago Ferreira de Borges

Em várias de suas faces, o corpo é presença marcante na filosofia ocidental. Seja como perigo sempre à espreita, com suas paixões ameaçadoras, debilidades frustrantes ou sentimentos que enfraqueceriam o entendimento, seja como digno território do desejo, das emoções, de um saber que se expande quase como que não-racional, mas sempre muito longe de ser irracional. 

Aos conflitos discursivos sobre o corpo, não resta alternativa a não ser o reconhecimento de seus limites, aqueles oferecidos pelo próprio objeto a que se debruçam. Afinal, há que se reconhecer as molduras no interior das quais emerge um sujeito que pensa sobre algo que é sua própria origem, extensão e experiência, o corpo que ele é e que ele habita. Objeto, portanto, não de todo apreensível pela linguagem – o que, de resto, acontece com tudo o que é da ordem do Real.

Toda essa complexa problemática não passou ao largo de um dos edifícios filosóficos mais completos do século XX, aquele construído por Theodor W. Adorno, um último gênio, como o nomeou um de seus alunos, Detlev Claussen. A inequívoca presença do corpo como questão para os modernos comparece com grande importância nas análises mais acuradas do filósofo, chegando a compor como eixo, mesmo que de forma não explícita, obras seminais como Dialética do esclarecimento, Minima Moralia, Dialética negativa e Teoria estética, bem como aquelas que compõem a mesma constelação analítica e reflexiva, como Prismas, Palavras e sinais e Sem diretriz – Parva Aesthetica.

É do movimento conceitual que o corpo alcança na obra de Adorno que trata o livro O primado do corpo a partir da filosofia de Theodor W. Adorno, de Thiago Ferreira de Borges (Editora Dialética, 2021). Ele é o trabalho mais completo já escrito em língua portuguesa sobre o corpo na obra de Adorno, além de não dever em inovação aos muitos dos que vêm sendo, de forma sazonal, publicados em outros idiomas. Sem se furtar da exegese de textos importantes do filósofo, assume os riscos da interpretação autoral, o que é cada vez mais raro em trabalhos como o que deu impulso à obra, originalmente uma tese em Filosofia. Faz isso com a ciência dos riscos e da indeterminação que tal movimento comporta, e tem êxito na empreitada. Encontra, assim, ao exercer o pensamento livre, patamares até então inéditos. Não é pouco.

Dedicando-se a tema fugidio (o corpo) em obra extensa e complexa (a de Adorno), o livro alcança uma improvável linha argumentativa coerente, mas mantendo aquilo que em Dialética negativa se chama de prioridade do objeto, ou seja, a renúncia em mutilá-lo em favor da imposição de um arbitrário conceito impetrado sobre ele – mesmo sabendo que sem ser conceituado, o objeto tampouco chega a encontrar sua forma. 

O livro vai, então, do conceito de natureza e de como o corpo se relaciona com ele, até às expressões estéticas que podem ser amparadas, criadas ou mesmo constituídas pelas experiências corporais. Nesse percurso, encontra um dos motivos adornianos que levam o pensamento à vertigem de suas próprias fronteiras, que é a dialética entre o idêntico e o não idêntico. Se isso, como afirma, se deve à materialidade irrenunciável do que é corporal, há algo mais que não lhe escapa, que é o momento de indeterminação, irredutível ao princípio identificador do conceito. Sendo assim, coloca-se – e aqui os ecos lacanianos da análise são evidentes – o valor da contingência em seu estatuto de requisito para o exercício da liberdade.

Todo esse esforço só é possível se observada a potência dialética do pensamento de Adorno, em que a natureza emerge na ambiguidade de repetição e reconciliação vivida naquela rememoração de que nem tudo é apreensível. 

As consequências disso são importantes, e Thiago as sintetiza, me parece, ao afirmar que “A Dialética, enquanto método e experiência no mundo, inclina-se a assinalar que a razão e seus realizadores continuam, em boa parte, presos ao mito da exclusão da contradição via identificação. Sua verdade é o reconhecimento de que algo falha, não se submete. Isso, ao contrário do que imagina um espírito demasiadamente positivista, não inviabiliza o conhecimento ou seu desenvolvimento”. 

Chega-se então à relação entre sujeito e objeto e à intrincada posição do corpo em seu interior. Objeto-alvo das mais insistentes tentativas de identificação, é no desejo e na expressão estética que o corpo encontra sua dimensão emancipadora, seja na relação do sujeito e seu outro – que é também o si mesmo –, seja naquela entre indivíduo e sociedade. Neste último caso, é do caráter expressivo que estamos falando e é na leitura deste livro que encontramos o apoio necessário para entendê-lo.

Se é do corpo e seus destinos em Adorno que trata esta obra tão interessante quanto necessária, então poderemos, ao lê-la com a atenção que seu rigor exige, saber um pouco mais do tema e de sua atualidade. Para além disso, o leitor e a leitora se sentem convidados ao pensamento radical. Este é o único que se aproxima do inalcançável estado de liberdade, aquele cuja principal característica é suportar a contradição em suas próprias entranhas.

Ilha de Santa Catarina, outono de 2021.

*Com modificações e sob outro título, este texto apareceu como prefácio da obra aqui comentada.

 

Para saber mais: 

BORGES, Thiago Ferreira de. O primado do corpo a partir da filosofia de Theodor W. Adorno. São Paulo: Dialética, 2021. 268 p.

HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. 256 p. 


Imagem de destaque: Pixabay

 

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