Oração ao tempo-infância

Shellen de Lima Matiazzi1

És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo, tempo, tempo, tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo, tempo, tempo, tempo

Compositor de destinos
Tambor de todos os ritmos
Tempo, tempo, tempo, tempo
Entro num acordo contigo
Tempo, tempo, tempo, tempo

Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo, tempo, tempo, tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo, tempo, tempo, tempo […]

Caetano Veloso

Caetano, com a música Oração ao Tempo, nos convoca a pensar um modo de ser e estar na relação educativa da/com/na primeira infância. Esse tempo, tempo, tempo, que rompe com as barreiras de uma sociedade cafeinada, acelerada, urgente, capitalista, que busca, cada vez mais, acelerar o tempo de vida. 

Contrapondo-se a esse tempo do capital, pensamos a educação da infância para além do ensinar, mas como o tempo da contemplação, da experimentação, da fruição do pensar e do sentir. 

Por seu um dos deuses mais lindos, o tempo não se constitui como o kronos da vida, mais atravessa o kairós que habita em nós e nos permite experimentar e vivenciar com o corpo. Assim, é possível conhecer a si, ao outro e ao mundo… 

Por seres tão inventivo, o tempo infância se transporta por uma brincadeira, cujo ato de brincar é uma linguagem, e a criança, como ser linguageiro que é, expressa as inúmeras brincadeiras que cria e recria, e toda a sua possibilidade de estar e entrar em relação com o mundo. 

Brincar compõe destinos… Como um jeito de existir único, a criança vai tocando, sentindo, vivendo, sendo coisas, seres, dá vida ou outros sentidos à vida a partir de seu pensamento infantil.

Ao pedir-te o prazer legítimo e o movimento preciso, as crianças nos mostram os caminhos de como brincar, de como criar, de como serem (e sermos) livres. Nesses percursos, descobrem coisas, fazem investigações, criam hipóteses, fabulam.

São elas que, se por ora veem espaços antes abandonados pelos adultos, compõem com pares e ocupam o lugar… Com simplicidade, rompem com as fronteiras e fazem o corpo vibrar, pois brincar é o elemento propulsor da vida. 

O som do meu estribilho anuncia ao tempo, que corre e voa, que não abandone a infância, as infâncias, em suas múltiplas formas de existir, permitindo que as crianças brinquem e tenham o direito à infância, e que ainda assim possam, nesse tempo, vivê-la com todas as intensidades e ternura.

E ao reconhecermos as infâncias, também damos novos sentidos aos percursos traçados pelas crianças, nas suas diferenças e modos próprios de pensar e expressar.

Portanto, eu peço-te aquilo, não deixemos de aprender com as crianças, e te ofereço elogios, porque mesmo em meio a tempos tão sombrios, elas nos ensinam a brincar e a sorrir.

O encontro com as crianças nos altera, nos provoca, nos instiga a criar repertórios, a experimentar, produzindo afetos, de modo que meu espírito ganha um brilho e passa a ver outros possíveis.

Ah, tempo, tempo, tempo, vou te fazer um pedido, que nos encontremos logo com elas… 

… e que não deixemos as crianças que existem em nós. 

 

1Mestre em Educação, pedagoga e professora da Educação Infantil na Rede Municipal de Educação de Vitória-ES.


Imagem de Destaque: Philippa Willits/Flickr

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