Democratização do acesso à Universidade no Brasil independente: a história da moradia estudantil no Rio Grande do Sul

Fabiana Pinheiro da Costa1

Marcos Luiz Hinterholz2

Há no silêncio sobre a história das moradias estudantis um caminho investigativo no qual se pode apreender muito sobre as lutas e a capacidade de mobilização pelo acesso e permanência de diferentes grupos sociais nas universidades brasileiras. No desafio de refletir sobre educação no Bicentenário da Independência do Brasil, apontamos alguns elementos para pensar as experiências históricas de organização de Casas de Estudante no Rio Grande do Sul e os embates travados pela democratização universitária. 

A moradia estudantil é um fenômeno intrínseco ao surgimento do ensino superior, marcado pelo afluxo de estudantes aos centros urbanos em busca de formação. No Brasil, suas origens remontam à fundação da Faculdade de Medicina na Bahia, em 1808, e, mais de meio século depois, em 1876, da Escola de Minas, em Ouro Preto. Contudo, é apenas na década de 1930, a partir das sucessivas reformas institucionais do governo Vargas e do desenvolvimento econômico — com suas consequentes transformações urbanas e sociais que se observará a expansão do ensino superior no país. No tocante à moradia estudantil e as políticas de democratização do acesso e permanência dos estudantes, as iniciativas são ainda mais tardias e caracterizadas pela dispersão e diversidade de modelos de gestão e financiamento.

No Rio Grande do Sul, a primeira Universidade foi implantada em 1934, portanto, 112 anos após a Independência. No mesmo ano seria fundada a primeira Casa do Estudante, fruto do Movimento Pró-Casa do Estudante Pobre, inspirado nos ideais de Córdoba (1918) e encabeçado pelo movimento estudantil. Os recursos foram levantados por meio de campanhas junto à sociedade da época, sem aportes da Universidade. Em 1944, a entidade recebeu como doação um prédio da família de Aparício Cora de Almeida, jovem militante ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e morto na década de 1930 em circunstâncias ainda não esclarecidas. A organização segue existindo até os dias atuais, mantendo o seu caráter autônomo e autogerido. 

Em paralelo a essa iniciativa pioneira, outros movimentos autônomos podem ser observados no sentido da assistência aos universitários sul riograndenses. É o caso da Associação Casa de Estudantes Juventude Universitária Católica Casa 7 (JUC-7), fundada em 1949, e da Casa Estudantil Universitária de Porto Alegre (CEUPA), criada, em 1950, com o objetivo de abrigar estudantes universitários egressos de estabelecimentos evangélicos do ensino básico.

Com a expansão do ensino superior, o público que passou a frequentar os bancos da universidade foi pouco a pouco se modificando. Na década de 1950, as mulheres, ainda que em número inferior aos homens, adentraram esse espaço e também enfrentaram o dilema da moradia. Em Porto Alegre, nesse período, existia uma residência para as alunas da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mas foi em 1954 que um grupo de três jovens iniciou um movimento em prol da habitação exclusiva para as universitárias vindas do interior do estado e que não dispusessem de condições financeiras. O empreendimento se concretizou em 1956 quando se fundou a Casa da Estudante Universitária do Rio Grande do Sul (CEUFRGS). 

É somente em 1971 que ocorre um investimento mais expressivo da Universidade em moradia estudantil, com a inauguração da Casa do Estudante Universitário (CEU), a maior delas mantida com recursos públicos. Entretanto, a oferta de vagas para as mulheres não esteve contemplada nesse projeto, e elas foram impedidas, inclusive, de pisar na nova Casa. Diversas disputas foram travadas entre os estudantes e a Administração Universitária por conta do modelo de gestão autoritário implantado e dos parâmetros na elaboração de políticas internas de assistência. No início dos anos de 1980, houve um crescimento significativo de mulheres no ensino superior, o que, por conseguinte, aumentou ainda mais a demanda por habitação. A disparidade nas ofertas da Universidade era estrondosa, sendo 340 vagas para homens e apenas 40 para as mulheres, o que já não se encaixava ao novo quadro social universitário. Diante desses dados e de um cenário político que visava romper com o modelo autocrático de organização, os estudantes mobilizaram uma “invasão” feminina à CEU. Esse episódio teve grande repercussão e marcou um novo momento na estrutura das moradias estudantis no Rio Grande do Sul. A partir dele, muitas Casas realizaram protestos semelhantes e a oferta de assistência às mulheres, bem como a moradia mista, tornaram-se pauta entre a comunidade acadêmica. 

Estes são alguns exemplos da diversidade de concepções e atores envolvidos na criação e manutenção destes espaços e que apontam para a história dos muitos embates pela democratização da educação pública no Brasil. Oriundas de mobilizações que nasceram a partir dos próprios estudantes, de doações em prol de ideais políticos, de entidades religiosas católicas e evangélicas, ou ainda de políticas de assistência estudantil da UFRGS, as Casas do Estudante cumprem um importante papel social e refletem as sociedades nas quais estão inseridas. Passados mais de 86 anos da criação da primeira moradia no estado, a CEUACA, o atendimento à demanda por vagas ainda se dá de forma muito aquém das necessidades, fato que muito diz sobre nós e denuncia que ainda há muito a ser feito pela garantia do pleno direito à educação. 

 

1Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação/UFRGS.

2Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação/UFRGS.


Imagem de Destaque: A primeira Casa do Estudante de Porto Alegre-RS. Revista do Globo, ano 7, n. 172, 2ª quinz. Nov. 1935, p. 58.

 

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