Esta semana fui surpreendida por um convite do professor Tarcísio Mauro Vago, da UFMG, nosso querido Tatá, a “outrar-me” no lindo “Movimento Belimbeleza” que ele começou, inspirado pela beleza e leveza dessa palavra delicada inventada por Guimarães Rosa, nesse tempo de caos que estamos vivendo em função da propagação do Covid-19.
Este convite nos coloca diante do desafio de conseguirmos nos afastar dos nossos sentimentos tão confusos e inquietantes motivados por um momento de crise jamais vivido por boa parte de nossa geração. O desafio é, com a toda a prudência e cuidado que esse momento nos demanda, cuidar também da nossa sanidade mental, do nosso espírito e socializar isso, partilhar. Ou seja, cuidar do nosso humano. E, neste sentido, cuidar do outro, porque é isso que nos faz humanos. É essa capacidade de irmos além do instinto de sobrevivência, de racionalizarmos os problemas e agirmos para além de nós mesmos na direção de um outro que depende, em muitos aspectos, de nós. Mas não é só o outro que depende de nós, nós também, em nossa condição humana, dependemos dele, dependemos dessa relação, dessa interação, dessa dialética que se retroalimenta na vida coletiva.
O convite do Tatá, aparentemente simples, permite outras reflexões, a partir do cuidado que temos tido conosco neste momento. Não se trata de cuidarmos apenas de nós, há um sentido maior no autocuidado. Ele nos prepara para a vida em sociedade, para o outro. Nesse sentido, quando somos provocados a ultrapassar nossos limites individuais e, a partir do isolamento, olhar para fora, escolher algo que nos faz bem e partilhar, fazer uma doação daquilo que escolhemos cultivar, somos provocados a recuperar o humano em nós, pois o próprio ato de doar-se já poderia ser entendido como uma das melhores coisas que possuímos, um indício de humanidade.
Mas doar o quê? O que temos cultivado em nós que podemos doar? Que parte da nossa força fortalece também o outro? Que parte do nosso mundo interior escolhemos partilhar? Falamos em autocuidado como forma de não sucumbirmos, falamos em como lidar com a solidão como forma de não enlouquecermos diante da possibilidade forçada de termos que desacelerar, conviver um pouco mais conosco e, nessa convivência, nos reconhecer, nos enfrentar, talvez nos confrontar.
Falamos de nós e falamos do outro como se fossem duas coisas separadas. Falamos em solidariedade como se o outro estivesse fora de nós, como se esse fosse um movimento opcional. Não nos demos conta ainda – e essa pandemia que estamos vivendo em função de um vírus seria um excelente momento para isso -, de como somos apenas dois lados da mesma moeda, de como vivemos em uma rede de interdependência entre indivíduo e sociedade, já tão bem explicada pelo sociólogo Norberto Elias.
Não é possível pensar que algo que se passa conosco se restringe apenas a nós mesmos, embora o atual presidente do Brasil diga em cadeia nacional que se ele pega uma gripe isso é apenas problema dele. Não, não é. Nossas ações repercutem, se alastram, falam ou gritam por nós, sensibilizam ou (des)sensibilizam, elas educam, elas nos extrapolam e vão muito além de nós. Elas tocam o outro mesmo que não queiramos. E só quando nos conscientizamos disso, e que essa é uma via de mão dupla, podemos nos perguntar como queremos tocar o mundo e que mundo queremos que nos toque? Só diante da clareza dessa resposta podemos nos orientar em ações coerentes nessa direção.
Um convite a “outrar-se” é uma forte provocação a sairmos de nós mesmos. Vai além de nos aproximar das pessoas em tempos de isolamento social pela delicadeza, pela beleza, pela esperança, como forma de evitar o medo, as mágoas, as insatisfações e inquietudes. É um convite a sairmos da nossa zona de conforto e pensar que existe esse outro que, de muitos modos, também nos reflete.
É, de fato, um convite ao desconforto, à desnaturalização do isolacionismo que vivemos não apenas neste momento em que não devemos sair de nossas casas, mas do isolacionismo cotidiano. Um isolacionismo que tem reduzido a nossa existência a trabalhar compulsivamente, sem tempo de olhar para o lado, sem conexão com esse outro que é também parte de nós, sem nos importar com sua existência porque ela está fora do nosso círculo de afetos e de interesses mais próximos, sem nos importar mesmo conosco e com o que estamos nos transformando. Um isolacionismo que temos vivido há algum tempo e que tem reduzido nossa visão de mundo e que, sem nos darmos conta, vai nos (re)definindo enquanto nos isola e nos desumaniza nesse solitário caminho no qual estamos, muitas vezes, acompanhados.
Um convite a “outrar-se” nos dá a oportunidade de, em primeiro lugar, olhar para dentro de nós mesmos e depois, para fora; é um convite que passa pelo âmbito do sensível e pode transformá-lo em ação, que desdobra sensibilidade em empatia, que nos aproxima do que nos é estranho e incômodo e nos permite, no confronto pessoal, identificar e reconhecer esse estranho como parte de nós. Mas, “outrar-se” é, antes de tudo, um convite à pergunta: qual o lugar do outro em nós?
Imagem de destaque: Heidi Sandstrom. / Unsplash