“Não há vida sem morte, como não há morte sem vida, mas também há uma ‘morte em vida’. E a ‘morte em vida’ é exatamente a vida proibida de ser vida.” Paulo Freire
A rua peneira os raios do sol no banco vazio da praça.
Acanhado, o astro recolhe-se, como que temendo expor-se diante do infame cenário. Palhas cobrem-lhe a face luminosa: a ìko desce-lhe por inteiro.
Uma teia de aranha balança ejó por entre folhas perdidas. A praça geme. Atormenta-se. Ilhas de solidão transportam a invisível cobrança: o odu entra sem bater.
No espaço que era público, a coletividade enterrou-se, narcisista e temerosa. Muros de certezas e ganâncias ergueram-se escondendo segredos. Obés não dividem o pão.
Entre o novo e o velho, a guerra pelo equilíbrio nunca foi igual. Quebraram-se as regras da existência. Mapas de riqueza só indicam a fome, o roncó foi apagado.
Se na praça existisse espaço para as diferenças, talvez com um vaso, a ancestralidade pudesse prover um sirè. E, sobre Obaluaiê, soprassem responsabilidades. Mas as gentes, desapegadas dos orìkìs, instalaram-se em furnas abarrotadas de obrigações e prepararam-se, todos os dias, para não estarem ali. No lugar das diferenças, crateras sociais disseminaram-se pavorosamente, engoliram com avidez as linhas dos sonhos: na ponta das linhas, ikú fingiu normalidade. Ela espreitou o desfazimento dos sentidos, antes lenha para o fogo do tempo. Observou as veleidades traduzirem levianamente as coisas do mundo e, testemunhou a criação da praça enquanto lugar das gentes invizibilizadas.
O cavo abriu-se, tresloucado. A rua, beirando os limites da tradição, suspirou silêncios.
As gentes estavam longe de pensar o lugar de ir ou ficar. Por entre as palhas-da-costa, o sol compadece-se.
Pés descalços e irresponsáveis atravessaram as bordas do mundo sem ligarem as pegadas entre si. Cada qual seguiu só, fugindo de mundos presentes, desejando encontrar o paraíso apenas para si. Ninguém pensou que o céu das verdades permanece inacabado.
Foi assim com o princípio da pequena praça: sem educação e saúde, não dera ciência. O cavo aprofundou-se enquanto empanturrava-se de ignorâncias perigosas. Maldoso, cuspiu sobre as ciências, negou os limites da vida da vida, deliberou razões desprovidas de sorte. O cavo vomitou destruição, planificou o colo de ayiê, furou os olhos da confiança.
A praça foi sendo engolida e, a crescente voracidade do cavo inviabilizou a vida, como se dela fosse pai. Criminosas palavras de ordem foram e voltaram: conceitos manipulados sobre as gentes enfurnadas. Palavras fazem coisas, palavras germinam, atravessam os tempos, adiantam o fim.
Àpò-iwà, o saco da existência, tem abertura estreita. Ele reside no tempo das coisas do tempo e carrega um sopro de compaixão. Ia-se o tempo da praça. Sacudida pela atração do cavo, a praça convulsionou. À força de coerção, ausências e indiferenças, algumas gentes enfurnaram-se, mudas, sem nada para oferecer. Em nome da ordem, da moeda, da proteção, dos privilégios, dos lucros e da segregação, outras gentes aumentaram a balança da miséria. Tudo isso acrescentou poder à cratera ensandecida.
A praça pende pelas beiradas e o cavo engorda com gastronomia social: destrói o direito de viver a vida, esgotável e singularmente única. Fuzila iniciativas, alarga proibições, impõe certezas, e com armas de fogo, faz ponto em cruz. Enquanto isso, e em consequência disso, as emoções encarregam-se de alimentar os medos. As covardias galopam sobre a praça: a educação e a saúde, fuziladas e expostas, estão em carne viva; só pele e ossos, descarnadas, ambas, para não acordarem as gentes enfurnadas.
Silêncio!
A bocarra aguarda a última prece: “Transgredir! Transgredir… ir, ir, marchar para além! Além…além…” Atoto!
Uma teia de aranha estremece as folhas caídas. Muitas gentes espiam de suas furnas. Algumas choram, outras gritam, outras empunham panelas, outras procuram o banco da praça para dividir a palavra: ofó!
Obaluaiê! A sua benção para Aiyê. A redonda Terra visível está tomada de dores… as dores que não podem ser representadas, elas acontecem.
A rua peneira espaço: talvez a praça retorne à vida da vida e experimente a humilde e sábia igualdade entre os raios do sol.
Asé!
Referências:
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. RJ: Edições Paz e Terra, 1970..
Imagem de destaque: Priscila Paula