Martha Marandino
A preocupação com o papel da ciência na sociedade e a discussão sobre seus impactos não são recentes, mas são temas que têm tomado proporções maiores nos últimos anos no mundo todo e, em especial, no Brasil. Neste contexto, é crescente o debate e a reflexão sobre as relações entre ciência e sociedade na perspectiva de se questionar modelos unidirecionais e de se promover cada vez mais experiências dialógicas e de participação pública em questões ligadas a produção e disseminação do conhecimento científico e tecnológico. Várias pesquisas sobre percepção pública da ciência vêm sendo realizadas e, no ano de 2015, um enquete foi feita seguindo a política do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação¹ de estudo da série Percepção Pública da Ciência e Tecnologia no Brasil, realizado pelo Centro de Gestão e Estudo Estratégicos (CGEE). Os resultados desta pesquisa indicam, em linhas gerais, que dos 1962 entrevistados em todo país, 61% dos brasileiros demonstraram interesse por ciência e tecnologia (C&T), sendo este o quinto tema que mais atrai a atenção da população, atrás de Medicina e Saúde (78%), Meio Ambiente (78%), Religião (75%) e Economia (68%), mas na frente de Arte e Cultura (57%), Esportes (56%), Moda (34%) e Política (27%).
Constata-se, a despeito da opinião de muitas pessoas, entre elas de cientistas e políticos, que o brasileiro possui interesse por temas de ciência e tecnologia. As pesquisas citadas indicam ainda que a maioria dos brasileiros possui uma visão otimista, confiante e de apoio à ciência, sendo que atitudes mais cautelosas ou críticas surgem no que diz respeito às implicações sociais de aspectos específicos da C&T (CASTELFRANCHI et al., 2013). No entanto, esse quadro aparentemente animador tem outras facetas. Como indicado na notícia no site do CGEE:
Apesar do elevado interesse declarado dos brasileiros sobre assuntos de C&T, a pesquisa revela que eles continuam tendo baixo acesso a informações científicas e tecnológicas. A maioria declara que nunca ou quase nunca se informa sobre C&T. A televisão é o meio de comunicação usado por 21% dos entrevistados para adquirir conhecimento sobre as pesquisas. A internet já se aproxima desse patamar, com 18%.
Assim sendo, algumas questões se colocam frente a este cenário: Como tem se dado o processo de produção de conhecimento científico na sua relação com a sociedade? As políticas públicas de ciência, educação e comunicação têm promovido relações entre ciência e sociedade? Em caso afirmativo, que modelos de relação ciência-sociedade tem sido promovidos? Qual a efetiva participação do público? Como tornar as complexas e intricadas informações científicas compreensíveis e relevantes para o público? Como fazer com que cada pessoa se engaje em ações individuais e coletivas relacionadas a produção da ciência?
No início do século XXI, o então Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT), junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico Pesquisa (CNPq), deram início a uma série de importantes ações no sentido de incorporar a educação e divulgação científica em políticas, especialmente nos editais e chamadas – seja nas próprias áreas de educação e popularização da ciência, seja nas áreas das ciências naturais. Neste contexto, um marco relevante ocorre em 2003, com a criação da Secretaria de Ciência e Tecnologia para a Inclusão Social e, dentro dela, o Departamento de Difusão e Popularização da Ciência na Secretaria de Inclusão Social². Esta estrutura desenvolveu, ao longo de mais de uma década, ações e financiamentos de iniciativas como os editais de popularização da ciência, os programas de ciência móvel, entre outros. Na verdade, essas ações, na minha opinião, expressaram uma tendência destes órgão de, naquele período, fomentar a articulação e o comprometimento da pesquisa com a disseminação do conhecimento científico produzido no país.
Outras iniciativas oficiais na direção de legitimar a divulgação científica no nível de política científica no país merecem destaque. É o caso da criação, em 2005, do Comitê de Assessoramento (CA) de Divulgação Científica no CNPq e, em 2012, da “aba” de educação e popularização em C&T, no Currículo Lattes/CNPq, uma ferramenta com o objetivo de propagar a produção científica de professores e pesquisadores e melhorar contato entre cientistas e a sociedade. Sublinha-se, ainda, a consolidação das ações e dos financiamentos de popularização da ciência realizados ao longo dos anos subsequentes, como as Semanas Nacionais de C&T, o financiamento de dez modalidades diferentes de Olimpíadas Científicas e dos recorrentes editais para o desenvolvimento de Feiras de Ciência no país. Algumas das pesquisas de Percepção Pública da Ciência citadas anteriormente também foram desenvolvidas neste contexto.
Essas, entre outras iniciativas do MCTI, apontam para a valorização que as temáticas da educação e da divulgação e, mais especificamente, da popularização da ciência, ocupou nos últimos 15 anos na política científica do país. De um foco inicial, nos anos de 2003 a 2006, voltado aos meios de comunicação de massa e com preocupação de atingir um público amplo (NAVAS, 2008)³, haviam indícios em 2016, se tomarmos por base a fala do então Diretor do Departamento de Popularização e Difusão de Ciência e Tecnologia da Secretaria de Ciência e Tecnologia para Inclusão Social (SECIS/MCTI), Douglas Falcão, de que as ações do MCTI iriam se voltar para públicos específicos como meninas e mulheres, quilombolas, indígenas e deficientes, o que apontava para uma reflexão dos dirigentes deste órgão com relação a metas e prioridades.
Importante dizer que, neste panorama, no fim do século XX e até o ano de 2016, vinha aumentando o número de editais de fomento à pesquisa no Brasil que propunham, em alguma medida, a realização de ações que levassem o conhecimento científico produzido para outros setores da sociedade que não a própria comunidade científica. Esta parecia ser uma tendência, tanto em agências federais como estaduais de financiamento, com a proposição de editais com associação entre a pesquisa científica e as ações de educação e divulgação, ou mesmo editais totalmente voltados a estes últimos tópicos. Contudo, os editais se escassearam nos últimos dois anos e, atualmente, com os cortes na área de C&T anunciados, é difícil pensar em expansão desta tendência.
Em levantamento realizado em editais e chamadas públicas do CNPq, no período de 2005 a 2012, voltados ao tema da biodiversidade ou diversidade biológica (OLIVEIRA; MARANDINO; GIROLDO, 2017)4. Nesse conjunto, buscaram-se palavras-chave relacionadas à divulgação científica-difusão-transferência do conhecimento à sociedade – educação – educação científica – educação ambiental – extensão – arte. Dos 27 editais e chamadas identificados, 16 deles apresentaram algum enfoque em educação, divulgação científica, extensão, popularização da ciência/ou transferência do conhecimento à sociedade, correspondendo a mais da metade do total sobre o tema da biodiversidade.
Neste levantamento, constatou-se que no texto dos editais e chamadas, a terminologia relacionada à educação e divulgação é variada e aparece em distintos lugares, como nos objetivos, na identificação do público beneficiário do projeto, em critérios de elegibilidade, nas características obrigatórias da propostas e/ou nos critérios para julgamento, em resultados esperados ou na avaliação final/prestação de contas, em que os produtos da divulgação científica são solicitados em acréscimo ao relatório final (OLIVEIRA; MARANDINO; GIROLDO, 2017).
Ainda sobre o tema da biodiversidade, interessante notar que em alguns editais aparece o termo “transferência do conhecimento”, com o objetivo de destacar a necessidade dos projetos contemplados realizarem ações de socialização do conhecimento para a sociedade. É o caso do Edital nº 15/2008 /MCT/CNPq/FNDCT/CAPES/FAPEMIG/FAPERJ/FAPESP/Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia, que lançou em 2008 os Intitutos Nacionais de Ciência e Tecnologia, com o objetivo de promover a integração de grupos de pesquisa em redes, a formação de recursos humanos e a transferência de conhecimentos para a sociedade, em diferentes áreas. O texto do edital era explícito com relação ao tema da educação e da divulgação científica, como mostra o trecho a seguir: “[…] Os Institutos Nacionais devem ainda estabelecer programas que contribuam para a melhoria do ensino de ciências e a difusão da ciência para o cidadão comum”. Os INCTs abrangem diferentes temas das ciências naturais e sociais, incluindo a temática da biodiversidade.
Outro programa importante do CNPq lançado em 2010 foi o Sistema Nacional de Pesquisa em Biodiversidade (Sisbiota) que, em seus objetivos, evidencia a preocupação com o tema da educação/divulgação, na medida que se propõe a:
[…]fomentar e ampliar o conhecimento da biodiversidade brasileira, melhorar a capacidade preditiva de respostas a mudanças globais, particularmente às mudanças de uso e cobertura da terra e mudanças climáticas; associando as pesquisas à formação de recursos humanos, educação ambiental e divulgação do conhecimento científico.
A Chamada CNPQ-ICMBIO nº 13/2011- Pesquisas em Unidade de Conservação do Bioma Caatinga, teve o objetivo de apoiar projetos de pesquisa que visassem contribuir para o desenvolvimento científico e tecnológico relacionados ao manejo, uso e conservação da biodiversidade, e a proteção do patrimônio cultural e dos recursos naturais em Unidades de Conservação federais e seu entorno na Caatinga. Entre os critérios obrigatórios para o atendimento das propostas da Chamada, evidencia-se a necessidade de que nelas estivessem contempladas ações de “disseminação do conhecimento produzido pelos projetos de pesquisa para diferentes tipos de público, como os gestores das Unidades de Conservação, as comunidades locais e os formuladores de políticas públicas ambientais”.
Meu envolvimento como pesquisadora da área de educação e divulgação da ciência, mas também como participante com propostas para concorrer em alguns desses editais, e, ainda, como avaliadora de alguns desses programas, tem levantado uma série de questões e inquietações, algumas delas sistematizadas em um capítulo de livro, no qual se baseia este texto. Destaca-se, assim, algumas impressões sobre esse tema.
A experiência acumulada até aqui aponta que, em geral, os cientistas, ou seja, os produtores de conhecimento científico, têm dificuldade de propor ações quando surge a demanda por estabelecer relações entre sua pesquisa e a sociedade. Há um certo consenso sobre a relevância e importância de que isso ocorra, apesar de ainda haver reações contrárias a essa ideia, seja pela supervalorização da produção científica, em detrimento das ações de extensão e divulgação, seja pela concepção de ciência assumida. Há também um certo reconhecimento de que existe uma expertise na área de educação e comunicação para realizar a mediação entre ciência e sociedade. Desse modo, algumas questões e inquietações poderiam ser formuladas nos seguintes termos:
1) Sobre o valor da produção em educação e divulgação (acadêmica e não acadêmica): Encontramos muitas vezes nas avaliações de projetos, os artigos científicos sendo considerados como produtos de divulgação da ciência. Essa concepção é coerente com as demandas de popularização da ciência no Brasil? Como valorizar a produção a nível de políticas públicas? O que fazer com a aba de popularização da ciência do currículo lattes? (Aqui destacamos nossa proposta de se realizar uma análise sobre como vem sendo preenchida esta aba com intuito de compreender o quanto este espaço vem sendo utilizado pelos pesquisadores e o que eles destacam como ações de popularização da ciência.)
2) Sobre os agentes de pesquisa, educação e divulgação: Quem produz conhecimento é quem divulga? Quais são os papéis dos cientistas, dos educadores e dos comunicadores nesses processos?Até que ponto as especificidades das práticas da educação e da divulgação são reconhecidas?
3) Sobre o que se divulga: Que compreensão de ciência e de sua natureza vem sendo disseminada? Numa perspectiva de alfabetização científica, é relevante que se incorpore dimensões conceituais, mas também históricas, sociais, políticas e econômicas da produção da ciência. Isso tem sido feito? Em que medida?
4) Sobre os processos de disseminação de conhecimento e a participação pública em ciência: Quais públicos são alvo das ações? O público participa da produção e disseminação de conhecimento? Como? Que engajamento é desejável em termos de políticas públicas em C&T? Que modelos de relação entre ciência e sociedade estão sendo privilegiados? Quais desejamos? Quais são os desafios relacionados a seleção e adaptação do conhecimento para públicos diversos?
5) Sobre os editais: Considerando que os editais, como documentos políticos, expressam concepções de ciência, de sociedade e de sua relação e que são instrumentos de promoção de demanda e de formação da comunidade científica, cabe perguntar que perspectivas de relação entre ciência e sociedade eles estão fomentando? Como incluir e informar os cientistas sobre as intenções de ampliar a popularização da ciência? Como prever ações e agentes que atuem nessas áreas, já nas demandas dos editais?
5) Sobre a avaliação e os impactos (científicos, sociais, políticos e econômicos): As avaliações também são formas e instrumentos de promoção de demandas e de formação da comunidade científica. Assim, como construir instrumentos que possam auxiliar os coordenadores de projetos a realizar, promover e avaliar os diferentes impactos?
Com essas questões, convido a toda sociedade a refletir sobre as relações complexas e necessárias entre a produção e disseminação do conhecimento científico e a sociedade.
1. As mudanças governamentais ocorridas no contexto do golpe levou a fusão e extinção de ministérios. Em 2016 o até então Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação passa a receber a denominação de Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações por meio da Medida Provisória nº 726, convertida na Lei nº 13.341, de 29 de setembro de 2016. A lei extinguiu o Ministério das Comunicações e transformou o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação em Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). Neste texto uso o termo MCTI para lembrar que as ações aqui citadas ocorreram quando este órgão tinha essa designação.
2. Também no contexto do golpe, mudanças na estrutura do MCTIC acabaram com a Secretaria de Ciência e Tecnologia para a Inclusão Social, que tinha por missão promover políticas públicas que viabilizem a inclusão social por meio das ações de disseminação de conhecimentos e transferência de tecnologias às populações em situação de pobreza e/ou vulnerabilidade social. Hoje as ações ligadas a essa perspectiva encontram-se no que se tornou o Departamento de Políticas e Programas para Inclusão Social (DEPIS).
3. NAVAS, A. M. A dimensão política da popularização da ciência e da tecnologia no Brasil: impactos nos museus de ciência. 2008. 126 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
4.OLIVEIRA, D.; GIROLDO, D.; MARANDINO, M. Perspectivas de Comunicação Pública da Ciência em Editais e Chamadas Públicas sobre Biodiversidade no Brasil. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências. , v.17, p.299 – 326, 2017.
5. MARANDINO, M.; SOUZA, M. P. C.; PUGLIESE, A. Como, o que e para quem se divulga a biodiversidade? Refletindo sobre as relações entre pesquisa, educação e divulgação científica In: Pesquisas em unidades de conservação no domínio da caatinga: subsídios à gestão. Fortaleza: Edições UFC, 2017, p. 545-569.
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