Porque tanto se falou da família para fundamentar e justificar o voto “sim” à admissibilidade do pedido de impedimento à Presidente Dilma Roussef?

Pedro Castilho

Antropólogo e professor da Faculdade de educação da UFMG

“É preciso estar atento e forte”

Neste domingo testemunhamos as forças que povoam o congresso nacional brasileiro. Elas se revelaram pelos políticos que justificaram seus votos pelas suas famílias e por forças transcendentais divinas. Eles fizeram suas defesas particulares na arena pública do Congresso Nacional. Estas justificativas feriram a noção de estado democrático apresentando uma visão distorcida da noção de público e privado. Este circo de horror chegou ao seu ponto máximo quando o nome de um torturador foi evocado por um deputado, que me recuso a escrever o nome, nesta arena pública A privatização do público, sem nenhuma tentativa de disfarçar, foi o caminho destes políticos na defesa de seus votos. Devemos nos atentar para a configuração de um grupo conservador, preconceituoso e segregador na política brasileira, que vem ferir toda a construção da identidade no nosso país. A semana de arte moderna de 1922 apresentou a identidade brasileira, com o manifesto antropofágico, demonstrando que o Brasil deveria somar diferentes credos, religiões, etnias, orientações sexuais, raças e ideologias. Na contramão da proposta desta interpretação, estamos vendo crescer um discurso que rejeita a alteridade e a diferença produzindo a política da segregação. As práticas segregacionistas tiveram o seu auge na Alemanha de Hitler que acabou matando 10 milhões de judeus. A história poderá se repetir se não tomarmos consciência disto que está acontecendo na nossa cara! O dia 18 de abril de 2016 demonstrou que este embrião está mais vivo do que nunca. Temos forças conservadoras vindo de vários setores sociais que querem criminalizar o comportamento dos jovens, patologizar as escolhas sexuais, segregar as diferenças étnicas em nome de um Deus ou de um ideal de família. Estamos em um pais que tem como característica histórica e cultural a miscigenação. De outro lado, muros estão sendo construídos, leis estão sendo criadas e discurso preconceituosos estão sendo instituídos para criar uma população que não se tolera. Estas práticas estão sendo justificadas a partir de uma limitada concepção de Deus, uma preconceituosa noção de família e a privatização do lugar público.

O Brasil escolheu o caminho da mediocridade, da mesmice e da divisão de classe social. As transformações dos últimos 14 anos foram significativas e importantes para a população brasileira, mas chegou a um ponto de insuportabilidade para a alta classe brasileira. Por conta disto, vimos uma possível guerra civil entre coxinhas e petralhas manipuladas pelo quarto poder da mídia. O PT errou. Ele acabou fazendo o mesmo jogo dos que estavam no poder há 500 anos. Se este partido realmente fosse revolucionário não teria feito alianças com PMDB. Talvez o PT fosse apenas reformista. Estas foram as exigências do PSTU ou PSOL desde o início da era Lula. Mas, se fosse revolucionário teria conseguido chegar ao governo? Aí fica esta questão. A ilusão petista foi ter achado que conseguiria ter algum domínio do perverso partido dos oportunistas (PMDB). No lugar disso, o PT se esfacelou sendo seduzido por uma força que gravitava de acordo com seus interesses. Estamos em uma nova ordem social. Agora, a esquerda tem que lutar pelos direitos sociais e humanos para que o governo de Temer não transforme o Brasil em um país regido pela lógica do capital. A política neoliberal é um acontecimento mundial. Basta observarmos as transformações sociais na Grécia (um partido que foi eleito para romper com a Comunidade Europeia, mas preferiu negociar), na Espanha (35% de desemprego), na Itália, na Irlanda e, na última semana, na França de Hollande (grandes reformas trabalhistas), além das mudanças econômicas e sociais com os nossos vizinhos argentinos e um possível golpe em Honduras.

O capitalismo está em crise e este sistema quer tomar o poder dos estados e reformar as leis sociais, trabalhistas e dos direitos humanos. Não foi a toa que este golpe foi financiado pela FIESP. Isso irá acontecer a partir de amanhã. Fico pensando nos contratos trabalhistas, nas terras dos índios, nos direitos sociais das classes mais desfavorecidas. As consequências disto serão o aumento da violência, o retorno das doenças de países subdesenvolvidos, os suicídios de índios e o aumento das drogas. O estado irá tentar solucionar estes problemas com a redução da maioridade penal, com a delegação de solução de problemas para as empresas privadas. Os sindicatos não têm mais a força que tinham no início do estado do bem estar social. O que resta é transformarmos o que herdamos dos 14 anos de gestão petista em causas que não deixem os governos serem orquestrados pela lógica do mercado. Agora é o momento de recolhermos e fazermos o luto desta perda de poder e de identidade.

É importante, pois, tentarmos compreender os erros e os acertos das políticas de inclusão e dos direitos da população dos últimos anos. Os caminhos das reformas são mais importantes que as revoluções. A população brasileira parece estar mais politizada para o bem ou para o mal. Não vamos permitir que o governo de Temer faça transformações à revelia. A população está atenta á qualquer tentativa de ferir os seus direitos. Embora o golpe seja uma destas tentativas bem sucedidas. Espero que a população tenha assimilado a diferença entre um governo de direita e de esquerda. A democracia nos permite fazermos escolhas de quatro em quatro anos.

No final deste ano teremos oportunidades de escolhas como também em 2018, vamos esperar e observar. Vamos continuar a fazermos nossos trabalhos de base nas universidades, nas escolas, no campo da saúde e das políticas públicas. Somos bem articulados e acreditamos em transformações políticas e sociais, capacidade está que a classe dominante nunca foi capaz de fazer. Eles vão cair na mesmice e na mediocridade que sempre estiveram.


Marcelo Ricardo Pereira

Psicanalista e professor da Faculdade de educação da UFMG

Caros colegas e leitores do Pensar a Educação em Pauta,

Acolho o chamado aos psi e aos antropólogos sobre o que dizer do significante que talvez tenha mais se repetido no emblemático momento de domigo: a família – e os seus derivados. Também estive na Estação vendo a festa-samba (!!) antes do momento do voto a voto. A segregação é talvez nosso maior problema de hoje. Não que ela nunca estivesse presente antes, pois sempre esteve e a história jamais nos deixou de mostrar isso. Mas, hoje, ela está capilarizada, microfísica, presencial e virtual. Ela foi disseminada em todos os âmbitos a ponto de nossos impulsos de morte (de si e do outro) comporem de maneira banal as relações sociais e a psicopatologia de nossa vida cotidiana. Com o avanço dos saberes, das ciências, dos direitos, com as tentativas de mudança de estruturas sociais não há como não esperar uma reação de igual ou maior teor. Nossas formas de educar não conseguem municiar os sujeitos de recursos simbólicos suficientes (ou a tempo suficiente) para fazer frente à velocidade com que outros campos o fazem – a religião é um deles. O fato é que a família aparece como esse resíduo fundamental de que se faz uso para que se estanquem esses avanços e conquistas. As utopias comunitárias de 1960-70, quando temos em minha opinião o disparador da última versão de interrogação do modelo familiar ocidental, fracassou em tentar alterar a irredutibilidade de uma transmissão. A família segue inexorável. Não a família brasileira em geral, mas a “minha” família: exclusiva, egoica. Ela demonstra ser o último reduto imaginário da “luta das raças”, da permanência da “linhagem”, da defesa de “patrimônio”, de interesses “privados”… E o que mais é privado do que o modelo ocidental edipiano que inventamos para a família republicana? “Enquanto a comunidade não assume outra forma que não seja a da família, o conflito está fadado a se expressar no complexo edipiano” (Freud, 1930).

Não é à toa que essa figura combalida, declinada, posta em suspensão nos tempos atuais – o Pai – reaparece de quando em vez para fazer valer esse vetor privado de transmissão irredutível. Ele é requerido para por ordem, para dar norte, para hierarquizar funções, para estancar avanços que julga abusivos. O problema é que, se ele aparece para reprimir o ódio em nome da ordem, o que se sucede é justamente o contrário: sua assunção provoca ainda mais ódio, pois induz a mais segregação. E é a função Pai que determina em nosso meio quem participa ou não do bolo privado. Mas, à diferença do passado, em que os segregados tendiam a se identificar com esse lugar julgado socialmente como inferior, a se sentir culpados por não estarem à altura da norma social (do Pai), hoje, os avanços a que me refiro nos permitiram não mais nos identificar (ou nos identificar tanto) com esse lugar menor que a história das sociedades ocidentais nos relegou. Os saberes, os direitos, as lutas, as interrogações de estruturas estáveis ajudaram a suspender as determinações edipianas do Pai, pelo menos em parte, e a não consentir tanto mais com a segregação, nosso mal maior. Isso não virá e não vem sem resistências. Assistimos a isso ontem: o modelo edipiano nunca foi tão bombardeado, mas nunca ressurgiu tão forte.

“O que aparece na sociedade sob a forma de Gemeingeist (espírito de grupo) não desmente a sua derivação do que foi originalmente algo hostil… A justiça social significa que nos negamos muitas coisas a fim de que outros tenham que passar sem elas também, ou, o que dá no mesmo, não possam pedi-las” (Freud, 1921). Foi a frase que me veio ao assistir àquele espetáculo horrível de nossos cínicos congressistas de ontem… subtraem de si mesmos até a democracia para que todos não a tenham.

Mas é o dia seguinte, vamos continuar o avanço. E estamos em um lugar privilegiado para fazer isso valer-se – a universidade -, apesar da posição verdadeiramente refratária de tantos de nós. Vamos também sem eles.


André Favacho

Pedagogo e professor da Faculdade de educação da UFMG

Pelo Não, valores coletivos e públicos. Pelo Sim, valores privados e individuais. Pelo Não, projetos sociais e globais. Pelo Sim, defesas pessoais e totalitárias. De um lado, prevalece o NÓS, e, de outro, prevalece o MINHA. Se isso nos parece muito importante e nos choca, digo que se trata da coisa menos relevante para o debate atual. Uma boa pista para se começar a discussão é admitir que, assim como as pessoas do Não, as pessoas do Sim se mostram ferozes, emocionadas, decididas, profundamente tocadas ou mesmo ofendidas em suas verdades, e, no limite, se sentem recompensadas por restabelecer a verdade dos fatos e das coisas. Portanto, não se trata nem de farsa, nem de teatro, nem de exageros. Trata-se de verdades cravadas no próprio corpo e mentes dessas pessoas, de maneira que isso que assistimos é um modo de viver essa verdade. Agora, contra essa verdade está o pessoal do Não, que de igual maneira se mostram emocionadas, decididas, profundamente tocadas ou mesmo ofendidas em suas verdades, e, no limite, desejosas também por restabelecer a verdade dos fatos e das coisas. O Sim e o Não não são polaridades ou dualidades. São as duas partes de uma mesma moeda chamada política. O que liga e separa essa moeda são as relações de força que produzem as tais verdades e as fazem funcionar, marchar, ir para algum lugar. Contra o Não, o SIM expõe a verdade que ele (o Não) parece ter desprezado, a saber: o justo, o correto, o público, a ética, a lisura. Frente a tantas denuncias de corrupção, o SIM não perdeu a oportunidade de expor, escancarar, ultrajar a verdade que o Não parece ter desprezado, abandonado ou talvez negligenciado. Da mesma forma, contra o Sim, sem sucesso, o Não tenta denunciar a verdade do Sim, mostrando que ela é menor e privada, elitista e preconceituosa. Percebam: o que há de novo nesse cenário é a verdade do NÃO, sendo ultrajada da pior forma. Dizem e provam os do Sim aos quatro cantos que os NÃO abandonaram a sua verdade! De quebra dizem: Os Sim mostram e provam que são coerentes com a sua verdade: isto é, preferem a vida privada e por ela lutam, matam e morrem. O sim está autorizado a ser antiético, canalhas. O duelo de verdades está posto. A esquerda (o que resta dela, sei lá) terá que reinaugurar a sua verdade. Não se trata de recuperar conceitos, formação, democracia ou todas essas formas explicadoras de educação, se trata de reinaugurar a nossa verdade. Qual é a nossa verdade na sociedade, na universidade, no sindicato, na faculdade, na Capes, no CNPq, no MEC, no grupo de estudo e pesquisa, na extensão, na pós-graduação, na direção, nos colegiados. Contra qualquer poder, e ainda mais contra o poder totalitário, a verdade de si como demonstração mais apaixonada que uma pessoa pode oferecer ao outro. Contra o poder devemos nos examinar e dizer a nós mesmos: nós cidadãos do Brasil não nos envergonhamos de abandonar nossas mais sinceras verdades? Por que ao primeiro senhor nos entregamos tão facilmente sem antes calcular suas intenções? É justo trocarmos alguns trocados e privilégios em detrimento de nossas verdades? Para esse governo qualquer remédio é pouco. A luta agora é nossa, mas uma política começa antes como luta ética, que é, bem entendido, a coragem da verdade. Contra a preguiça e a covardia, a coragem da verdade, a coragem de dizer não.


Pablo Lima

Historiador e professor da Faculdade de educação da UFMG

Compartilho com vocês uma sensação de tristeza, decepção e indignação contra o que assistimos ontem.

Pensando sobre sua preocupação com a força das Igrejas e do discurso religioso no Congresso, e na sua questão sobre como isso nos afeta, a nós formadores de professores, também fico tentando compreender o que está se passando no país.

Chamo a atenção para a ausência completa de referência a “classe social” nos discursos. Com exceção dos que votaram contra, a maioria evocou a família, deus, etc., mas não a classe social. Que classe realmente representam?

Enquanto isso, assistimos a um avanço da perspectiva religiosa nas escolas, principalmente na educação básica pública, com enorme tolerância por parte da academia e dos gestores, incapazes de reafirmar o caráter laico da educação pública. Todos os dias ouvimos casos de escolas em que temas afro-brasileiros e de gênero são contestados por estudantes evangélicos e pelas próprias direções das escolas. E não sabemos o que fazer.

E aí, voltando os olhos para a academia, no que concerne nossas pesquisas, também sinto um esvaziamento do conceito de “classe social” e uma fuga das perspectivas críticas. Nos pareceres de artigos e nas avaliações dos pares, são comuns as reprovações de trabalhos com referencial marxista, considerado ultrapassado ou ideológico. Assim, os pesquisadores sociais tem evitado termos como classe social, ideologia, dominação, alienação em suas pesquisas para conseguirem financiamento e espaço em periódicos….

Após assistir à sessão de ontem, fico pensando na necessidade de trabalharmos com esses conceitos fundamentais do marxismo para entender o Brasil. Afinal, para além da cortina de fumaça do discurso moralista, cínico, hipócrita, o que vimos não foi os representantes do capital se sobreporem aos representantes do trabalho?

Mas realmente a história por vezes nos dá um tapa na cara. Ontem foi uma dessas vezes… Espero que sirva para nos despertar!

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