Variações sobre o Lattes – I

Alexandre Fernandez Vaz

Foi há vinte anos a primeira vez em que me deparei com o Currículo Lattes. Eu era um jovem professor, recém-ingressado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde estou até hoje. Candidatei-me a um edital interno de fomento à pesquisa, com a expectativa de ter recursos para adquirir um computador. Servíamo-nos, eu e vários colegas, de um punhado de máquinas que ficavam disponíveis em uma sala de uso comum do Departamento de Metodologia de Ensino, onde eu então estava lotado. Não era fácil, mas tampouco o trabalho se via impedido por isso. De qualquer forma, fui contemplado e os recursos permitiram a compra de um computador de mesa, mais impressora, scanner e quatro livros. Foi o embrião do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea. Melhor do que eu esperava.

O edital exigia que o currículo fosse apresentado no formato do Lattes, o que obrigava a acessar o site do CNPq e baixar o aplicativo no computador, já que ainda não havia versão inteiramente online. O preenchimento era lento e eram abas e abas que se abriam demandando informações e informações. De lá para cá tudo ficou mais fácil, e o sistema, desenvolvido pelo Grupo Stela, da área de Engenharia de Produção da própria UFSC, tornou-se dinâmico e abrangente.

A plataforma Lattes trouxe muitas vantagens para a vida de quem pesquisa no Brasil, para além do evidente conforto de poder atualizar (e eventualmente corrigir) constantemente o mesmo repositório de informações que depois as transforma de maneira ordeira em documento apresentável. O principal benefício, me parece, é que o currículo é público e qualquer um a qualquer momento pode consulta-lo com facilidade. Como a pesquisa no Brasil é em grande parte sustentada por recursos estatais, assim como quase toda docência de ensino superior de qualidade, é razoável que haja um mecanismo que mantenha as atividades de cada um em acesso irrestrito. É certo, no entanto, que os que visitam a plataforma são, principalmente, os envolvidos com ela. Precisaríamos de uma educação científica mais presente e mais ampla, de forma que a consulta fosse fruto do interesse pela pesquisa como patrimônio nacional e expressão de humanidade.

Sim, o Lattes é também um dispositivo de poder dos mais eficientes, fazendo com que cada um se sinta, com frequência, em dívida, essa forma tão contemporânea de dominação, como certa vez afirmou Gilles Deleuze. Além disso, funciona como certidão de nascimento de quem está envolvido com a pesquisa, envolvendo cada um na teia de relações que vão da iniciação científica do Ensino Médio à pós-graduação e aos projetos de grande monta. É também o passaporte que permite cruzar a fronteira para o país da ciência, tão distinto daquele em que se vive ordinariamente. Com todos os problemas que tem, o currículo unificado e público faz aumentar as chances de termos avaliações um pouco mais transparentes que antes, o que não é pouco no Brasil, onde o patrimonialismo joga um papel dos mais importantes e em que a Universidade se mantém com fortes traços aristocráticos.  Ademais, quem analisa os currículos, no mais das vezes, são os próprios pesquisadores, quando alçados à condição de gestores da pesquisa, posição que se tem que assumir com frequência porque a malha burocrática é volumosa, o que faz com isso também gere pontos na própria avaliação. O circuito se fecha e se retroalimenta.

Como o Lattes é uma plataforma que recolhe as informações prestadas pelo próprio pesquisador, sem possibilidade de checagem imediata, eventualmente gera-se mal-entendidos, ao mesmo tempo em que tem havido um esforço, conjugado com outros mecanismos de organização e controle da ciência e tecnologia,para auferir a veracidade das informações, por exemplo, em relação a um artigo (doi) ou a um autor (orcid). No primeiro caso coloca-se alguma dificuldade no preenchimento dos dados. Já houve programas de pós-graduação propondo oficinas sobre o currículo, colegas que confundem artigos publicados em jornais com os que compõem periódicos, confusões entre estar em um cargo efetivo e ser professor titular.

Em relação ao segundo caso, encontra-se a veracidade ou não das informações prestadas pelo autor. Há anos atrás alguém fez um currículo falso do locutor esportivo Galvão Bueno, sem outro motivo que mostrar a insegurança do sistema. O recente quase Ministro de Estado da Educação acaba de não subir ao posto que lhe assignara o Presidente da República porque, para nosso pasmo, declarou um doutorado que não havia concluído, como confirmou a Universidade Nacional de Rosário (UNR). Ele cumpriu os créditos necessários, mas sem obter a aprovação da tese. Haveria a possibilidade de reapresentar o trabalho, o que não foi feito. Houve equívoco de sua parte, forçando o entendimento de que concluíra o doutorado porque, embora sem aprovação final, fora até o fim dos créditos? Claro que sim. É difícil imaginar que não soubesse o que estava fazendo, trata-se de pessoa esclarecida e com experiência acadêmica mais que suficiente para isso. Ao enviar as atualizações do currículo para o sistema, cada um deve confirmar que se responsabiliza pela veracidade das informações dadas, mas parece que isso nem sempre basta para que a coisa funcione.

Vale dizer que situação semelhante à de Carlos Dacotelli viveram outros, como Dilma Rousseff, quando era Ministra da Casa Civil do governo Lula, ainda que tenha resolvido a questão de forma menos traumática, ao dizer que era um engano que fosse mestre e doutora em Economia, não tendo procurado justificar o injustificável. Isso sem falar de Damares Alves, titular do Ministério de Estado da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, com os títulos outorgados por ela mesma, chancelados que seriam por seus conhecimentos bíblicos. Ou do Ministro do Meio-ambiente, Ricardo Salles, que demorou para alertar que não tinha o título de Mestre por Yale. Todos foram criticados, Dacotelli talvez mais do que os outros, suponho que tanto porque o acirramento político é mais forte que antes, quanto porque é negro e, para nosso racismo endêmico e estrutural, isso só podia mesmo dar errado.

A situação constrangedora gerada pelo ex-quase Ministro não é, no entanto, pior do que a longa permanência de Abraham Weintraub, o pior dos piores, ainda que ela bem corresponda ao bizarro governo Bolsonaro. Mas a justificativa de Dacotelli, a de que cumpriu os créditos, sugere algo, pelo seu inverso, para pensar sobre o doutorado e as expectativas que depositamos sobre essa etapa de formação. Sigo na próxima semana.


Imagem de Destaque: Plataforma Lattes

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