Não somos 70% (ainda) e não podemos repetir 2013!

Tiago Tristão Artero*

Em tempos que o fascismo mostra seus dentes sem o menor constrangimento, é preciso construir um movimento contra o fascismo (unido com/e) que apoie as trabalhadoras e trabalhadores, brasileiros e brasileiras, os movimentos antifascistas, pela vida das negras e negros, LGBTI+, os povos indígenas das mais variadas etnias e regiões do país, quilombolas, assentados, imigrantes, famílias de encarcerados, os que lutam pelo direito à moradia, profissionais da educação, da saúde, da segurança, da iniciativa privada e do funcionalismo público.

Este movimento deve explicitar o acordo entre neoliberais, fascistas, conservadores religiosos, eugenistas, elite agrária e países que se beneficiam com a exploração, opressão e morte do povo e da natureza no solo brasileiro.

Nos solidarizamos e nos unimos com movimentos antifascistas das torcidas organizadas, das movimentações de estudantes, jornalistas, escritoras/escritores que não baixam a cabeça frente às investidas fascistas e intimidações.

Fazer passeata na praça aliando uma grande parte de pessoas que simplesmente acham que Bolsonaro é meio exagerado (o que significa que se fosse mais educado, tudo bem ele continuar) é arriscar repetir 2013 (em que MBL e tantos outros se criaram) e dar base para que o fascismo se fortaleça.

Não somos 70% contra o fascismo, porque ser anti Bolsonaro não implica, necessariamente, em ser antifascismo – posso ser anti Bolsonaro e ser a favor da manutenção do status quo e seu racismo estrutural (o que, por si só, representa a manutenção da base supremacista branca, que é fascismo). Há muitos fascistas ávidos para ocupar o lugar do atual presidente e que também são anti Bolsonaro, são contra os métodos aplicados por este e, também, são contra muitas de suas pautas. Querem pegar carona no movimento antifascismo, desvirtuando o próprio símbolo antifa (preto e vermelho) e o que o termo “antifascismo” representa.

Isso não torna estes “caroneiros” menos fascistas e se nos unirmos aos fascistas para tirar o Bolsonaro, logo, estaremos subordinados a estes e sem o estarrecimento mundial diante do que o Bolsonaro faz e que alimenta/fortalece qualquer movimento que visa retirá-lo do poder.

Dessa forma, urge entendermos o que é ser antifascismo para perceber que, se assim nos identificarmos, teremos a real noção de que não somos 70%.

Uma esquerda bem articulada, clara em seus princípios e em suas ações compõe uma porcentagem menor que 70% (ainda) – em que pese seja uma realidade que possa ser transformada, se a encararmos honestamente. Tomando como referência os partidos políticos e sua representatividade contra o capitalismo que dá sustentação ao atual fascismo, estamos falando de qual porcentagem real?

Se os fascistas podem chegar ao poder pelas vias legais, ser a favor da legalidade neste momento pode ser uma faca de dois gumes. Se tivermos estratégia, podemos fazer diferente. Tortura, assassinato de indígenas, das esposas (quando se podia aplicar a legítima defesa da honra, em crimes passionais), a objetificação e venda de seres humanos também já foram práticas legais, não?

Mas, essa mesma legalidade, em alguns termos, desqualifica as ações do atual presidente, daí o ímpeto de alguns movimentos que se dizem antifascistas defenderem a legalidade… mas cuidado, pois este termo, historicamente, demonstra mais limites do que possibilidades.

Legalidade, sim, desde que haja uma movimentação para aproximar essa legalidade à ética, incluindo o entendimento da coexistência de outros povos habitantes do território brasileiro e das classes sociais que são oprimidas – de forma legal, diga-se de passagem.

Por isso, Jair e Donald querem denominar o movimento Antifa como sendo terrorista, porque abala a hegemonia da classe dominante… o Antifa, em suas bases, abala todo tipo de opressão promovida pelo capital.

Assim como a marcha de Mussolini em Roma não passou de um mero ato para a formação de um governo que já estava em curso, atualmente, os movimentos de domingo (com a participação do presidente do Brasil) visam legitimar os alicerces de um endurecimento estatal antidemocrático que ofusca as instituições e coloca o “Brasil acima de tudo” (mesmo sendo poucos) – tornando a ideia de povo e Brasil (como união) uma figura meramente retórica, sem existência real.

O ideal de (B)brasil que defendem é branco, bélico, fundamentalista, patriarcal, racista, eugênico e genocida (do povo negro, quilombola, assentados, sem teto, sem terra, povos indígenas e todos que “ousam” manter sua cosmologia distante da produtividade e alienação da qual depende o capitalismo para sua continuidade).

O nacionalismo que defendem é excludente e mata aqueles ilustrados na fala do ministro da educação (na fatídica reunião de 22/04), dos copos de leites em punho, na ‘fotinha’ das crianças europeias como representantes da nova geração que este governo defende. Quem quiser ver um exemplo lácteo disso, basta assistir ao filme Bastardos Inglórios para notar a simbologia.

A própria República não barra o fascismo, quando as elites econômicas estão no comando – pois precisamos considerar que o genocídio de povos negros, tradicionais e indígenas ocorre há séculos e não é uma exclusividade desse governo, mas uma política de atuação do próprio Estado brasileiro, desde a sua origem. Daí o entendimento que o antifascismo deve ser anticapitalista, uma vez que estas elites mobilizam a repressão estatal para desmobilizar qualquer levante do povo.

Restaurar a ordem está na fala dos que se autoproclamaram cidadãos de bem. Discurso que só se sustenta quando compreendemos que restaurar a ordem (nos termos colocados) é manter as coisas como estão. No caso do Brasil, como área de exploração dos países ricos (seu povo, seu solo) e como o segundo país mais desigual do mundo. Esta é a ordem que defendem… da opressão/exploração do povo e da natureza.

Representantes da igreja, da polícia, dos setores militares, ligados a agropecuária e extração em larga escala afinizam-se com a manutenção da ordem vigente.

As ações contra o governo atual e, de maneira mais ampla, contra o ‘fascismo’ devem estar baseadas em conceitos e princípios que embasam o entendimento deste termo.

A esquerda ‘cirandeira’ não acabará com o fascismo, uma vez que não entende ou, pelo menos, parece não reconhecer o real significado do antifascismo e engrossa o caldo dos que são contra o Bolsonaro, mas que apoiam a opressão que o sistema provoca.

Seremos os 70% contra o presidente mas que estenderão o tapete para que outros venham? Ou vamos pautar o discurso pela construção de um “novo normal” (que já está em disputa, ressalte-se) pelas bases da esquerda – que é quem real e verdadeiramente pode produzir mecanismos sociais de fortalecimento e legitimação dos movimentos sociais democráticos (já existentes e vulnerabilizados pelo sistema capitalista)?

Pautar a disputa do discurso pela democracia e contra o fascismo pela esquerda é fundamental para dar conhecimento das lutas, dos pensamentos e os mecanismos que podemos construir para fortalecer as bases sociais dos movimentos populares. O povo brasileiro está desguarnecido e abandonado pela inércia proposital do governo Bolsonaro – que pretende escolher quem vai deixar morrer e quem vai permanecer vivo nesse contexto de pandemia. É a chance que a mídia não nos dá… mas que movimentos nas ruas nos dão, de falar para as pessoas em massa.

O fascismo de Mussolini e o Nazismo de Hittler foi iniciado com uma ínfima minoria, então por que não qualificar o debate dos atuais 70% para que, de fato, sejam antifascismo?

O Manifesto de 1933, da “A Frente Única Antifascista” (S. Paulo, 14 de julho), direcionava-se ao proletariado como a principal força, às distintas profissões e nacionalidades, aos militares que ansiavam que a liberdade vencesse, a estudantes, escritores(as) e jornalistas que não se corrompiam, aos pequenos comerciantes e lavradores empobrecidos pelo sistema, às camadas médias que sofriam cooptação para defender o fascismo e às/aos torturadas(os).

O manifesto alertou a existência de tropas mercenárias a favor do fascismo, recrutados na crise econômica existente. Indicou que em São Paulo partidos políticos, sindicatos operários e jornalistas reivindicavam a liberdade de pensamento e de organização.

O Manifesto de 1933 alertava a respeito de que as ações fascistas da Itália reverberavam no Brasil, inclusive a partir das relações coloniais que países invasores insistiam em manter. Assim, uma contra-ofensiva deveria ser colocada em prática.

Indicou que a Igreja, em seus moldes, temia o ataque ao capitalismo, porque ela mesma teria que desaparecer, caso o sistema fosse derrubado, ou seja, a Igreja tinha interesse em manter as bases em que a sociedade capitalista se sustentava.

Como a capacidade de resistência do proletariado ainda era pequena, a união de instituições (como ocorreu em São Paulo) era fundamental e estas teriam que abrir mão de seus programas próprios (sem a perda de autonomia e liberdade crítica) para constituir uma Frente Única Antifascista.

Os objetivos comuns passavam pelo combate às ideias, ao desenvolvimento e à ação do fascismo, luta ampla pela liberdade, ensino leigo (laico), separação da Igreja e do Estado e formação de um bloco único de ação contra o fascismo.

Ao final, ALERTA para que a estabilidade da Frente Única Antifascista “será garantida por um programa comum de ação, em cujo desenvolvimento não se ferirão os pontos de divergência ideológica existentes entre as organizações coligadas.” (grifo meu).

Diferente do que o governo brasileiro atual prega, o Manifesto de 1933 já dizia que quem viola a segurança dos cidadãos é o fascismo, pois “Os domicílios são violados, os lares constantemente invadidos para as perseguições. O Homem do povo fica reduzido à situação de um animal acorrentado, que não fala, nem pensa, nem escreve, nem trabalha, senão sob o chicote dos seus verdugos. A dignidade humana, a fraternidade, a ligação confiante entre os homens desaparecem. Cada indivíduo vê no seu semelhante um inimigo e um espião que o entregará, na primeira oportunidade à ferocidade dos governantes. O fascismo é a morte certa para os que protestam e a volta à barbárie para os que ficam. Acima de quaisquer interesses de classe ele é, essencialmente, desumano é anti-humano”.

*coautoria de Kellyssima – militante ecofeminista, ecossocialista.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *