Não pensar, destruir – é bom que levemos isso a sério

Alexandre Fernandez Vaz

Há algumas semanas um vereador de Belém, capital do Pará, veio a público para pedir desculpas a amigos e demais interessados porque, alinhado com Jair Bolsonaro, opusera-se às políticas de isolamento social, julgando-as exageradas e prejudiciais para todos e todas. O Sargento Silvano (PSD) passava a defender o lockdown e a dizer que o presidente da República mentia para a população.

Silvano pertence aos quadros da reserva da Polícia Militar do Pará, instituição com a qual guarda evidente identidade anunciada por sua denominação político-eleitoral e pela farda eventualmente ostentada. A propósito, a existência de uma força policial de registro militar denuncia as dificuldades estruturais da democracia no Brasil. Afinal, estamos em guerra contra quem? Contra nós mesmos?

A mudança de posição do parlamentar foi importante em si mesma, assim como seu pedido de desculpas. Ele deve receber todos os aplausos. Os motivos que o levaram a apoiar as medidas sanitárias contra a propagação do Covid-19 fazem, ademais, pensar. Silvano fora infectado, assim como vários de seus familiares, incluindo seu pai que, pior dos cenários, morrera. A triste história dá contornos a um fenômeno observado não apenas na atual crise pandêmica: a enorme dificuldade de se operar conceitualmente, afastando-se da mera opinião, mas também da imperiosa ideia de que a captação da realidade pelos sentidos é a única possibilidade de conhecer (“Não vi, não escutei etc., não sei se existe”.) Foi preciso sentir a dor na própria carne, e especialmente na carne da carne, o corpo paterno, para saber do perigo, da letalidade da pandemia. Em sentido mais rigoroso, parece haver ausência de pensamento, o que, como certa vez pontuou Hannah Arendt, é um disparador para o mal.

Confiar – e não simplesmente acreditar, o que seria outra coisa – na razão significa entender que algo possa existir mesmo não sendo possível, por exemplo, vê-lo, seja porque se está ausente, seja porque não dispomos dos adequados instrumentos para tal (Nunca vi a Terra desde um lugar em que pudesse asseverar que ela não é plana, no entanto, sei que ela é redonda). Neste caso, confiamos na possibilidade de que um fenômeno possa ser conhecido e que isso se dá pela via conceitual e imaginativa do pensamento. Mas não é assim que acontece com muitos de nós ao fazermos escolhas que fatalmente serão contrárias aos interesses coletivos mais básicos.

Uma dessas opções absurdas se mostrou com todos os seus despropósitos na eleição de Jair Messias Bolsonaro para a presidência da República. Ela que, lembremos, por pouco não se deu no primeiro turno. Foi preciso um interminável festival de negligência, incapacidade de gestão, censura, inverdade, vulgaridade e desrespeito à lei para que a aprovação ao governo de Messias caísse nos últimos meses. Mas já não estava tudo claro antes das eleições? Para uma parcela da população é provável que não, mas, para uma outra, bastaria que ela pensasse um pouco, que não se recusasse a isso. Anos e anos de escolarização – e em muitos casos também de ensino superior – que ao invés de formarem para o pensamento ajudaram a obliterar a razão!

Por falar em não-pensamento, durante a semana Jair mais uma vez recorreu ao diletantismo mágico para explicar um fenômeno concreto. Foi no seu tradicional encontro com apoiadores e apoiadoras em frente ao Alvorada, quando uma mulher lhe pediu uma mensagem para as famílias que tiveram integrantes mortos. Bolsonaro disse que lamentava, mas que era o destino de todos. Destino é peça que compõe a estrutura mitológica, portanto ninguém está destinado a morrer por obra de uma pandemia. O que há é condenação, ato que emerge na história por vontade ou omissão de seres humanos. Condenação de muitos, potencialmente de todos, à morte gerada pela forma como o governo federal se relaciona com o problema.

Vivemos em guerra, como atesta a existência da Polícia Militar, no que depende do governo federal estamos condenados ao salve-se quem puder perante à pandemia, o Presidente discursa como se fosse um oráculo pelo avesso, o não-pensamento é um dos patógenos que ele nos quer inocular. Mas não é tudo.

No domingo passado, depois de sobrevoar em helicóptero uma manifestação contra as instituições democráticas, Bolsonaro desfilou a cavalo em frente ao Planalto, para então dizer que estaria sempre onde o povo estivesse. Fez lembrar um outro cavaleiro, o deplorável João Baptista de Oliveira Figueiredo, último dos ditadores militares a ocupar a o posto de Presidente, ele que era general oriundo da Cavalaria. Figueiredo preferia o cheiro dos cavalos ao do povo, Jair insiste na fantasia segundo a qual o “povo” está com ele, unido na contraposição às elites e a grupos específicos para os quais os últimos presidentes teriam governado. Disparate? Sim, mas isso não é uma anedota, é o rosto de um projeto de destruição.

Theodor W. Adorno escreveu em suas Minima Moralia que o filósofo Hegel não pôde incluir em sua Filosofia da História as armas de Hitler, mas que estariam, se houvesse sido possível, “entre os fatos empíricos selecionados por ele nos quais se exprime imediata e simbolicamente o estado atingido pelo o espírito do mundo”. Hegel escreveu ter visto tal espírito realizando-se na figura de Napoleão montado em um cavalo na conquista da Prússia. O espírito visto por Adorno era outro, “sobre asas e sem cabeça”, na forma de um míssil. Bolsonaro rebaixa a história e, de forma perversa, realiza o espírito de nosso tempo. Melhor que levemos a sério tudo isso, antes que seja tarde.

Ilha de Santa Catarina, junho de 2020.


Imagem de destaque: Marcos Corrêa/PR

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