Muito além das paisagens ancestrais de Drummond: caminhos literários e histórias ecológicas

Charles de Oliveira Fonseca*

Vagner Luciano de Andrade

O presente texto apresenta as paisagens ancestrais de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), um dos imortais da literatura brasileira delineando algumas percepções sobre conflitos ecológicos. A urbe em que nasceu tem receptáculos significativos da vida deste ícone com elementos que compuseram grande parte de sua obra. O renomado mineiro registrou diferentes tempos e espaços em seus escritos, ao escrever sobre múltiplos caminhos traçados muito além da sua cidade natal: Itabira, num contexto de frustações e expectativas para com o lugar e pessoas. Em Confidências de um itabirano, ele fala de sua paisagem ancestral com a qual rompeu.

 

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho, vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte, é doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas que ora te ofereço: este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval; este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas; este orgulho, esta cabeça baixa…
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

Assim a cidade com seus caminhos Drummondianos é um recorte pedagógico significativo que atrela Literatura à Ecologia, à Geografia e à História, que delinearam um projeto multidisciplinar de extrema relevância. Empreender uma visita educativa pelas paisagens itabiranas é rever e revisitar Drummond, ler e meditar sobre seus escritos e, por meio deles perceber alterações ambientais pertinentes a degradação, impactos e riscos da mineração. Itabira do Mato Dentro, MG insere-se na Bacia do Rio Santo Antônio, região com significativos impactos socioambientais decorrentes da exploração de minério de ferro. A apreciação da paisagem e sua análise crítica nos dizem muitas passagens pretéritas, presentes e futuras. A cidade é berço da Companhia Vale do Rio Doce, fundada no dia 01 de junho de 1942 e privatizada em maio de 1997. Devido à ação desta mineradora, Drummond viu o Pico Cauê desaparecer da paisagem local. Em seus registros lamenta a perda deste referencial simbólico que se tornou parte de sua memória, portanto, identidade itabirana e significativo patrimônio paisagístico.

Esta história da degradação da natureza em sua terra natal fez com que Drummond se mudasse para a capital mineira. Mas em Belo Horizonte, novas decepções se materializaram e são registradas pelo escritor. A Serra do Curral torna-se referência paisagística para Drummond. Era talvez uma espécie de lembrança do Cauê, agora inexistente, triturado e levado para longe em vagões ferroviários. Em seu livro “Discurso de primavera e algumas sombras”, cuja 2ª edição foi publicada no Rio de Janeiro pela editora J. Olympio, em 1978 descreve sua nova decepção.

Tento fugir da própria cidade, reconfortar-me em seu austero píncaro serrano. De lá verei uma longínqua, purificada Belo Horizonte sem escutar o rumor dos negócios abafando a litania dos fiéis. Lá o imenso azul desenha ainda as mensagens de esperança nos homens pacificados – os doces mineiros que teimam em existir no caos e no tráfico. Em vão tento a escalada. Cassetetes e revólveres me barram a subida que era alegria dominical de minha gente. Proibido escalar. Proibido sentir o ar de liberdade destes cimos, proibido viver a selvagem intimidade destas pedras que se vão desfazendo em forma de dinheiro. Esta serra tem dono. Não mais a natureza a governa. Desfaz-se, com o minério, uma antiga aliança, um rito da cidade. Desiste ou leva bala. Encurralados todos, a Serra do Curral, os moradores cá embaixo. Jeremias me avisa: “Foi assolada toda a serra; de improviso derrubaram minhas tendas, abateram meus pavilhões. Vi os montes, e eis que tremiam. E todos os outeiros estremeciam. Olhei terra, e eis que estava vazia, sem nada nada nada”. Sossega minha saudade. Não me cicies outra vez o impróprio convite. Não quero mais, não quero ver-te, meu Triste Horizonte e destroçado amor.

Dando adeus a BH, o escritor troca então a capital pelo Rio de Janeiro onde se fixa efetivamente. Estas percepções ecológicas nas obras de Drummond nos dizem que os tempos atuais imprimem uma nova ordem nas relações entre homem e a natureza. Os conflitos e impactos ambientais se desdobram em diferentes lugares e comunidades e contribuem com a degradação e a descaracterização do meio ambiente. A ampla influência da ação humana no tempo e espaço possibilitou à proposição de uma nova denominação conceitual à história ecológica: o Antropoceno. Em Minas Gerais, a égide mineradora consolidou suas influências sobre a região a sudoeste do tradicional território geológico do Quadrilátero Ferrífero. Ao nordeste deste mesmo território, jazidas minerárias são pleiteadas no território da Bacia Hidrográfica do Rio Santo Antônio, com ações em comunidades e paisagens entre Conceição do Mato Dentro e Itabira. Assim, discussões sobre a acelerada influência do Antropoceno na modificação das espacialidades, pode ser efetivada junto aos alunos. Por meio de uma breve história dos conflitos ecológicos a partir dos impactos socioambientais projetados na Itabira do Mato Dentro, MG, eles perceberão que a Bacia do Rio Santo Antônio corre riscos.

Esta bacia hidrográfica também é contribuinte do Rio Doce e as ações minerárias potencializam ainda mais os problemas de degradação já existentes. O estado protagonizou o maior desastre socioambiental da história da gestão ambiental brasileira, quando a Barragem de Fundão, localizada no município de Mariana/MG se rompeu e destruiu as comunidades de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, ambas soterradas por grande quantidade de lama que também poluiu o Rio Doce. Assim uma visita educativa pelas paisagens ancestrais de Drummond é uma ação prática, efetiva e inovadora no sentido de decodificar parte de seus registros literários como mensagens ecológicas, e, portanto legitimamente atuais e necessárias a alunos e professores que se articulam na construção de uma nova ordem socioambiental. Neste contexto, uma nova história social se desdobra no horizonte de possibilidades, para a efetiva gestão dos recursos naturais e do patrimônio histórico-cultural, efetivando elos de sustentabilidade.


PARA SABER MAIS

O isolamento humano na metrópole: uma análise da Literatura de Carlos Drummond e Clarice Lispector – Edilane Abreu Duarte

Ilhas de ferro: descobrindo a importância ambiental dos ecossistemas em cangas ferruginosas – Flávio Fonseca do Carmo

As pedras de Drummond – Everaldo Gonçalves

A cidade moderna: Belo Horizonte nas crônicas de Carlos Drummond de Andrade – Valéria Aparecida de Souza Machado

Balão cativo – Pedro Nava

Museu de Território “Caminhos Drummondianos” – Prefeitura Municipal de Itabira

Os lugares da memória de Carlos Drummond de Andrade: imagens poéticas de Belo Horizonte – Flora Sousa Pedner, Lucas Zenha Antônio e Maria Auxiliadora da Silva

*Charles de Oliveira Fonseca é bacharel em Turismo e Mestre em Geografia pelo IGC/UFMG. Educador com atuação na área do turismo pedagógico


Imagem de destaque: O Popular

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