Década de 1920 e 2020: nacionalismo e sanitarização moral das escolas

Raquel Melilo

Renata Fernandes Maia de Andrade

 “[…]não seria conveniente assentar, de uma vez, que o ensino primário no país só poderá ser ministrado a crianças de certa idade, na nossa língua” (discurso de Arthur Bernardes, de 1924). Sua mensagem é clara e direcionada a um público específico: as escolas primárias dos estados do Sul que insistiam em ensinar em línguas estrangeiras em detrimento do português. Ele sugere “assentar” que o ensino primário no país seja ministrado somente na nossa língua. Tão bem assentada ficou a questão, que não conhecemos escolas primárias de ensino obrigatório que ensine exclusivamente em língua estrangeira.

Hoje, parece que se pretende terminar o assentamento que não foi integralizado no passado. E que fique claro: por assentamento entendemos o apagamento de identidades étnicas e nacionais. Se em 1920, o foco foi a comunidade imigrante, em função de questões demográficas, hoje outras identidades estão ameaçadas em nome da construção de um outro projeto de nação.

O movimento negro, para o presidente da Fundação Palmares, é uma escória maldita. Os índios, para o presidente do Brasil, querem viver como o povo branco. E para sintetizar bem a questão, o Ministro da Educação, expressou, em reunião institucional, o ódio que tem pelo termo o “povo indígena”. Para ele, só existe um povo: o brasileiro. Nada mais exemplar, não?

Nesse contexto, uma perspectiva provocadora acerca da década de 1920 e o ano de 2020 (que sim, parece uma década) refere-se às ideias sanitaristas que buscavam não somente a higienização, mas também o aformoseamento da moralidade dos indivíduos. Nos anos de 1920 as medidas higiênicas eram necessárias para salvar um país doente. Para Émile Durkheim, a população brasileira precisava ser saneada não somente na perspectiva física, mas também mental.

Dever-se-ia, na década de 1920, ser saneado o corpo, a inteligência e, também, o caráter. Vemos, na atualidade, o resgate repaginado desses objetivos. O controle dos livros didáticos, a suposta limpeza ideológica das instituições escolares e, por fim, o revisionismo histórico. Todos esses são elementos simbólicos de uma suposta sanitarização moral das instituições escolares. As moléstias ideológicas, foco de perniciosidade moral, devem ser destruídas, para assim, além do controle do corpo, também se controlar o caráter.

Daremos destaque aqui às disputas em torno das narrativas sobre o passado, logo, da História. Nos anos de 1920 foi forte um movimento de construção da história nacional, distanciada do passado colonial e imperial, sendo essencialmente republicada. Com a República surgiu a preocupação: quem somos? Quem são os outros? Para isso era necessário povoar as cidades com novos monumentos, estátuas, escolas e um nova história. Esse projeto tendeu a homogeneizar as diferenças, apagar a diversidade brasileira e estabelecer uma única e universal história nacional. Para a concretização desse projeto se escolhe um passado, seus supostos heróis, mitos e protagonistas.

Em 2020 os questionamentos quem somos? Quem são os outros? São resgatados e estabeleceu-se um confronto sobre o quê e quem o passado representa. Mais uma vez a História da nação em disputa com objetivos semelhantes aos da década de 1920: um passado idealizado, imaginando que o tempo passado é melhor que o presente e, que, por isso é necessário disciplinar as novas gerações para garantir a moral e bons costumes da sociedade brasileira. Representa, supostamente, a reestruturação de uma ordem ideal perdida.

Importante destacar que o ensino de História vem sendo reformulado há alguns anos defendendo a pluralidade dos sujeitos históricos, bem como a diversidade de passados possíveis. Contudo, percebemos negacionistas e revisionistas que questionam essa diversidade com a ideia de uma contaminação ideológica, negando assim a democratização da história brasileira.

Desejam, como nos anos de 1920, uma história única, homogênea, monopolizada e que possa ser usada no presente, para a legitimidade de projetos de poder.

Entender a década de 1920 e as repercussões políticas e sociais que a sucederam (uma ditadura, por exemplo) pode nos ajudar a pensar na construção de um novo caminho. Isso não significa assumir que a pesquisa histórica, por si só, seja a chave para se compreender o presente e intervir no futuro por meio do estudo do passado. Pretende-se abandonar este chavão tão pretensioso. A pesquisa histórica nos ajuda a compreender o presente pelo encontro com o outro, causando surpresa e/ou espanto. É esse espanto que pode proporcionar uma ruptura com visões de mundo hegemônicas. E a abertura para novos caminhos.


Imagem de destaque: Indígenas da aldeia Halataikwa, da etnia Enawenê-nawê, localizada entre os municípios de Juína e Comodoro,MT. Foto: Jana Pessôa/Setasc-MT

 

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