Crianças que estão na escola, mas nela não aprendem: o direito humano à proficiência da própria língua

Sueli Maria de Oliveira*

Aprender é uma condição essencial ao ser humano. Existem aprendizagens que só se efetivam a partir de uma sistematização de conhecimentos que a escola, a princípio, é quem tem condições de oferecer devido à sua complexidade. A leitura e a escrita são duas dessas aprendizagens, principalmente, porque seu domínio se constitui geralmente, como condição de sucesso ou fracasso escolar. Sabendo que esse fracasso não se restringe à escola, mas acarreta consequências para toda a vida, com uma implicação direta na vida social de cada sujeito, sobretudo porque em nossa sociedade a cultura letrada exerce uma função social de destaque e embora domine outros saberes que são importantes, uma pessoa não alfabetizada enfrentará diversas dificuldades para sobressair socialmente.

Apesar do domínio desse conhecimento ser o objetivo principal da escola, dada a importância da aprendizagem da leitura e da escrita, existe uma parcela considerável de crianças que passam por ela, mas não aprendem. Alguns dados ilustram essa dramática.

Os dados divulgados pelo Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (INAF) em 2018, mostram que embora o número venha se reduzindo, ainda amargamos o resultado de 8% de analfabetos na população entre 15 e 64 anos de idade e que somente 12% dos alfabetizados são proficientes em leitura e escrita.

Em termos de escolaridade, os dados demonstram uma desigualdade entre os grupos étnico-raciais, em que a população de pretos apresenta níveis de proficiência em leitura e escrita bem mais baixos do que a população branca. Enquanto 49% dos brancos são considerados proficientes, a proporção é de apenas 10% dentre os que se identificam como pretos.

Com relação à situação socioeconômica, dados do último Censo Demográfico realizado pelo IBGE revelaram que a taxa de analfabetismo das pessoas com mais de 10 anos é bem maior nas classes com rendimento mensal de até ¼ do salário mínimo alcançando um patamar de 17,6% contra 0,4% em classes com renda superior a 5 salários mínimos.

O que nos revelam esses dados? Observamos que o problema do analfabetismo se concentra na parcela da sociedade que é mais desfavorecida por questões econômicas e/ou étnicas. Na população marginalizada socialmente é que se verificam os maiores índices de fracasso escolar, alcançando menores resultados de proficiência em leitura e escrita.

Na tentativa de aliviar o desconforto em relação ao que os dados nos revelam, comumente fazemos uma interpretação inadequada desses dados ao responsabilizarmos individualmente o sujeito pelo seu fracasso, o que gera um estigma equivocado em relação às condições de aprendizagem dos alunos da classe popular que não tiveram garantidas as mesmas oportunidades de sujeitos oriundos de outras classes.

O que vimos é, de forma equivocada e perversa, a escola definindo um sujeito desfavorecido socialmente como menos capaz de aprender, e como nossas ações vão de encontro àquilo que acreditamos, tal concepção redunda em práticas que dificultam ou até inviabilizam a aprendizagem, através de um ensino precário que só reafirma a condição de marginalizado, sem uma devida sistematização que poderia empoderar esse sujeito.

Ressaltamos que ao citar o termo escola, referimo-nos a todo o sistema educacional que inclui órgãos nacionais, estaduais e municipais de Educação e gestores escolares responsáveis por políticas públicas efetivas, assim como supervisores e professores escolares que são responsáveis por uma prática didática-pedagógica que garanta a qualidade da aprendizagem.

Numa interpretação mais ampla, para não omitir um problema que é sistêmico, paralelo ao sujeito que fracassa, há uma escola com uma prática didática-pedagógica que não garante as reais necessidades de aprendizagem dessa criança da classe popular, uma escola que ainda não consegue enxergar o sujeito para além de sua condição social, redefinindo sua concepção de aprendizagem e consequentemente reorganizando seu fazer pedagógico.

Para agravar mais a situação, defendemos a repetência como forma de resolver o problema por se evitar que essa massa seja promovida sem a aprendizagem necessária. No entanto, em 1986, Emília Ferreiro já nos questionou: “Reiterar uma experiência de fracasso em condições idênticas não é obrigar a criança a ‘repetir o fracasso’? Quantas vezes um sujeito pode repetir seus erros? Supomos que tantas quantas sejam necessárias até que abandone o propósito”. Em outras palavras, até que não haja outra saída, que não seja a de abandonar a escola, quando na verdade poderíamos questionar se não seriaa própria escola que abandona esse sujeito, quando mais precisadela, quando este não apresentaas condições necessárias para permanecer dentro do que se espera dele. Pois sabemos, como Ferreiro, que a desigualdade social também se manifesta na desigualdade de oportunidade ao direito de aprender.

Nesse contexto, uma questão que podemos nos fazer, na tentativa de descontruir concepções equivocadas, seria se uma criança que está na escola e nela não aprende, fato que é influenciado por questões sociais, mas não é sobremaneira determinado por elas, a escola estaria preparada para ensiná-la? Responder a essa questão, pode nos ajudar. Talvez seja o único caminho, para não cometer o erro de tornar a vítima o principal culpado de sua condição menos favorável, numa tentativa de aliviar nosso desconforto frente ao problema.Pois, estar na escola, mas nela não aprender, definitivamente não diz de uma questão pessoal, mas sobretudo de uma escola que ainda não consegue dialogar com esse sujeito da classe popular de forma a garantir sua aprendizagem.


* Professora Iª Fase do Ensino Fundamental da Rede Pública de Gramado /RS

Imagem de destaque: SantiVedrí/Unsplash

 

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