Ardidas recordações escolares

Alexandre Fernandez Vaz

Hermes está na casa dos cinquenta anos e frequentou a antiga escola primária na segunda metade da década de 1970. A conversa começa em tom de anedota, já não sei bem qual foi o móbile para ela. Importa que o relato é impressionante. As recordações da escola nem sempre são as mais bonitas, ainda que eventualmente, como foi o caso, sejam narradas entre risos apaziguadores.

Já não havia palmatória, mas a régua de madeira, além de matematizar o espaço, castigava o corpo. As mãos de Dona Iara Schultz, que escreviam no quadro negro, também eram hábeis para puxar os cabelos da nuca, a cada erro flagrado. Ao chegar em casa, a queixa para a mãe não surtia o efeito esperado. Se apanhara da professora, é porque algo malfizera para merecer a surra. Deu-se conta de que estava sozinho. Mas havia mais. Nas séries de exercícios, tocava a cada aluno a resposta a uma questão, fazendo com que Hermes contasse os colegas à frente e as perguntas da cartilha, de modo a saber qual lhe seria destinada. E entrava em pânico.A solução devia ser apresentada oralmente para toda a classe, coisa que, invariavelmente, ele não conseguia fazer com acerto.

Ao final do ano escolar, sem que muitos da turma houvessem concluído as atividades da cartilha, eis que a solução foi frequentar a casa da professora e, ao redor de uma mesa comprida (para as crianças as dimensões são frequentemente superdimensionadas), concluir o programado. Livres da maestra, uma vez concluído o livro de exercícios? Não, ela voltaria no ano seguinte, ocupando-se do mesmo grupo, agora na segunda série.

Anos depois, o café da manhã na padaria fez o jovem Hermes deparar-se com a presença de Dona Iara. Fez que não viu o signo do pavor escolar. Ofendida, depois de tanta dedicação à educação de tantos, ela reclamaria com o moço do caixa.

Mas a vida escolar seguiu, agora já no antigo ginásio. As aulas de Educação Física tinham início ainda na madrugada escura, camiseta e shorts brancos, imaculados, sem que nem mesmo a marca da roupa pudesse destoar. Disciplina militar e laboral cujo sentido é apenas a submissão do corpo. Bem que Hermes e seus colegas tentaram argumentar com o diretor da escola que aquilo não estava bem. Foram expulsos do gabinete e ameaçados de suspensão se a impertinência se repetisse. O medo crescia na proporção de imaginar a mãe recebendo a anotação na caderneta.

Havia ainda a professora de Língua Portuguesa da oitava série, que se emocionava com a leitura da poesia brasileira, algo que Hermes nunca entendeu, como tampouco pôde compartilhar. Corpo reduzido a organismo laboral-militar, imunidade à sensibilidade estética, domínio precário da própria língua, matemática aos trancos e barrancos; cultura científica e histórica praticamente nula, resultado final que, por paradoxal que pareça, não impediu o êxito na vida profissional do infeliz aluno.

Há algo terrível em tudo isso. Pode-se afirmar que Dona Iara exercia lá suas inclinações sádicas, que o professor de Educação Física estava mais para sargento que para mestre, que a titular de Língua Nacional se dedicava aos próprios devaneios paranoicos ao invés de à educação. Mas isso não é dizer tudo. Aos três professores mencionados na conversa entre taças de vinho não se pode negar a dedicação, o empenho em formar alunos. Mas, como foram eles formados, que ímpeto os leva às práticas sádicas ou sentimentalistas? Às vezes, aliás, uma encontra a outra, como quando um aluno se constrange porque, ao contrário do que a professora espera, não compartilha das emoções que seriam provocadas pela leitura de Andorinha, Andorinha, de Manuel Bandeira.

Ao defender a educação, o filósofo Theodor W. Adorno foi sempre um cético em relação à escola tradicional, autoritária, embrutecedora. Nela vige um ressentimento em relação aos professores, frágeis figuras cuja autoridade resta apenas na sedimentação coletiva de que o poder, principalmente o de impingir dor ao outro, é prerrogativa docente. Ainda quanto a estes, seriam figuras para as quais o interdito ao desejo seria a regra. A autorização para serem duros com os alunos advém do fato de terem sido eles mesmos, outrora, vítimas de semelhante dureza. O refúgio no sentimentalismo, por seu turno, não é mais que um analgésico desesperador. Não há como sobreviver assim por muito tempo, pelo menos não em condições mentais razoáveis.

Algo mudou de lá para cá, mas talvez nem tanto quanto gostamos de dizer. O ciclo precisa ser rompido e para tanto é preciso privilegiar o lugar do desejo na docência. Não é casual que um dos mais conhecidos orientandos de Adorno e de Max Horkheimer, OskarNegt, tenha sido um dos precursores das escolas alternativas contemporâneas na Alemanha, aquelas que procuraram, e ainda procuram, compatibilizar pensamento crítico, sólida formação intelectual e práticas antiautoritárias.

Reconhecer que professores e professoras desejam e, portanto, se equivocam, é muito importante, assim como assuntar que o risco do equívoco não é um problema, mas uma chance de algo novo aconteça. Talvez a recordação das frestas no que parece monolítico e instransponível ajude. Hermes se lembra de uma cena da segunda série. Uma menina foi chamada por Dona Yara para resolver um problema matemático na lousa. Sem saber como fazer, tampouco como lidar com a exposição frente à turma, desincumbiu-se da equação e desenhou uma flor. No centro dela, uma carinha sorrindo.

Um pouco mais de resistência, um tanto mais de desejo.

São Bernardo do Campo, janeiro de 2018; Ilha de Santa Catarina, março de 2018.

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