Parasita e a naturalização da prática de sugar do outro nossos meios de sobrevivência

Evelyn de Almeida Orlando

Ando aproveitando o período de confinamento em função do coronavírus para ver filmes que estavam parados na lista há algum tempo e rever outros sobre os quais gostaria de adensar um pouco mais o olhar. Nesse movimento, voltei ao filme Parasita, procurando, a partir do cinema, pensar questões provocadas pela sétima arte no intuito de estimular em mim mesma um exercício indisciplinado do olhar.

No início do filme, duas realidades sociais gritantes entram em um conflito que é apresentado com forte dose de humor, trazendo uma aparente leveza para uma situação que de leve não tem nada e que implode ao longo da trama.

Uma família desempregada busca ocupar as vagas de emprego junto a uma família rica que eles admiram, e fazem o que é preciso para isso, inclusive ferindo qualquer tipo de ética. Lembro-me dos vários sorrisos na sala lotada de um cinema em Paris (onde e quando o assisti pela primeira vez) que me indicavam exatamente que – não importa onde estejamos – em larga medida, as pessoas não se dão conta da ironia e da perversidade que existe nas discrepâncias sociais. A sutileza dessa violência cotidiana – que leva, ao mesmo tempo, uns a pensarem na festa de aniversário do filho enquanto outros têm que lidar com a dura realidade de terem perdido toda a sua vida em uma enchente – passa muitas vezes despercebida ou naturalizada em nosso tecido social.

Ao longo do filme, a tensão é permanente. As diferenças sociais gritantes e as várias manobras feitas pela família Ki-taek para conseguir empregar toda a família na casa de uma família rica, da qual passam a ter grande fascínio pelo estilo de vida, extrapolam qualquer ética, mas são apresentadas com alguma dose de humor. E então nos vemos diante do conflito entre ética e sobrevivência, embora esta não seja uma questão muito explorada no filme.

A maior tensão do filme se dá, de fato, pelos muitos conflitos de classe, mas não foi o conflito entre ricos e pobres que mais me chamou a atenção. Este é flagrante e essa dupla realidade social é constantemente posta em evidência em cenas subsequentes que retratam uma e depois outra, com a aparente naturalidade que elas coexistem no sistema capitalista.

O que me chamou a atenção, no entanto, pela realidade cruel e pelo estado de cegueira dos sujeitos envolvidos, foi a luta intraclasses, mote para o desenrolar de boa parte da película. Ou seja, a luta entre duas famílias que partilham dos mesmos problemas, vítimas das mesmas fissuras do sistema, que ao invés de nutrirem entre si algum tipo de empatia e se unirem para tentar melhorar suas condições de vida, duelam entre si violentamente para manterem seus empregos. Elas não se dão conta de que estão do mesmo lado nessa tessitura social. Elas não se dão conta de que são, ambas, vítimas. Elas competem entre si violentamente para estar em um lugar que é melhor do que suas miseráveis realidades, mas que só existe em função da existência dessa miserabilidade.

Cada família a seu modo quer passar para o outro lado, mas isso não significa que elas lutem contra uma existência miserável, elas lutam apenas para escapar da sua própria existência miserável mesmo que, para isso, outros ainda continuem vivendo essa experiência que elas rejeitam. E, curiosamente, nenhuma das duas famílias pobres enxerga a família rica como responsável por sua miséria, muito menos o sistema que produz essa miserabilidade. Ao contrário, ambas a admiram e desejam esse lugar. Assim, movidas por esse sentimento, e sem se dar conta, ao invés de lutar contra um sistema que as massacra, elas se tornam predadoras de si mesmas.

No ápice do conflito, a morte de um deles não causa sequer algum tipo de constrangimento ou dor. Não há empatia. Ao tentar solucionar o problema, um dos personagens do grupo menos favorecido chega mesmo a deixar pistas de que a forma como resolveria a situação seria com a morte das duas pessoas que se colocavam como obstáculos à farsa que montaram para manter seus empregos. Como em toda situação violenta, esta também sai do controle e várias pessoas se ferem, outras morrem, outras vivenciam traumas que ficarão com elas para o resto de suas vidas.

O filme pode ser lido como um retrato do que estamos vivendo atualmente em nossa sociedade. A flagrante desigualdade social, o descaso do sistema, a falta de empatia entre os seres humanos, o desrespeito à vida e a naturalização da morte têm levado à destruição do ser humano, em suas muitas formas. Temos instalado um caos que nos levará, em curto espaço de tempo, à autodestruição. O que estamos fazendo conosco? O que estamos deixando que façam conosco? Todos brigam pelo direito de estar em um lugar privilegiado, sem se dar conta de que esse lugar não existe para todos. Negligenciam, isolam, ferem, matam, ignoram, naturalizam… Um ciclo contínuo que segue em ritmo desenfreado.

Então, continuamos brigando entre nós para chegar ao topo da cadeia social (o que só é possível pela exploração de uns sobre outros) ou procuramos outra lógica mais compatível para todos, em que o nosso sucesso não dependa do aniquilamento do outro?

Talvez seja tempo de nos perguntarmos sobre o significado das palavras conquista e dignidade e pensar como elas podem ser aplicadas sem se excluírem e de modo extensivo a todas as pessoas. Talvez seja tempo de repensarmos a moral que nos rege. Seria esta uma moral que nos leva a uma preocupação real com o próximo – não o próximo que é minha família ou que faz parte do meu rol de afetos – mas o que se assemelha a mim pela condição humana e que é privado de condições dignas de sobrevivência? Ou seria apenas uma moral que dita valores e códigos de comportamento, normatizados por determinados grupos sociais, que mais servem para oprimir do que para libertar? Que moral nos rege quando vemos uma criança dormindo na rua? Que moral nos rege quando vemos pessoas catando comida no lixo e, sem nenhum constrangimento, nos damos ao luxo de jogar comida fora por diferentes e ínfimas razões? Que moral nos rege quando vemos cotidianamente pessoas perderem tudo que têm nas catástrofes da vida (as quais muitas vezes assolam apenas aos pobres), e isso não produz em nós uma indignação feroz transformada em mobilização real? Somos capazes de perder para que outros ganhem? Somos capazes de reduzir nossas benesses para que outros tenham alguma expectativa?

Talvez seja tempo de enfrentar essas questões para tentar equacionar de outro modo as ambiguidades da nossa humanidade que nos permite sermos “bons” e “miseráveis” ao mesmo tempo. O que escolhemos cultivar? Como não nos perdermos de vez na naturalização do desafeto, do perverso, do cruel, alimentando um sistema que dá claros indícios de onde vai nos levar?  Se não rompermos essa lógica, não estaremos todos em vias de nos tornarmos parasitas?


Imagem de destaque: Le Bookmakers / Barunson E&A Corp – Divulgação

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