Mudanças climáticas, aquecimento global e controvérsias. Para além de informar, educar!

Martha Marandino

Daniela Lopes Scarpa

Andre Kyoshi Fujii Ferrazo

A periódica mudança climática na Terra pode ser explicada por fatores terrestres e astronômicos, como indicam pesquisas no campo da geologia1. É causada também pela ação dos seres humanos sobre ela. Mas, o quanto cabe a cada um desses elementos? O Painel Intergovernamental  sobre Mudanças Climáticas (IPCC) tem divulgado relatórios confirmando que o ser humano é o responsável pelo atual aquecimento do planeta, alertando para os perigos que os impactos mais graves têm causado sobre o planeta. Na contramão desse alerta, encontram-se os posicionamentos de governos como o americano e o brasileiro, que subestimam o papel do ser humano nesse processo. Será o aquecimento global um fato?

Parece não haver dúvidas, dentro da comunidade científica, de que as mudanças climáticas existem e que uma das principais causas é o impacto do ser humano sobre o planeta. Mesmo assim, uma parcela relevante da sociedade não considera convincente os argumentos em torno da veracidade desse fenômeno, que vem ganhando cada vez mais destaque na mídia, nas políticas públicas e em manifestações sociais. Além disso, é um tema cada vez mais presente em situações de ensino de ciências nas escolas e em exposições de museus em diferentes países. Por exemplo, este ano ocorreu a 3º edição do Concurso de Vídeos sobre Mudanças Climáticas das Escolas Públicas do Estado de São Paulo, promovido anualmente pelo Projeto Ecossistemas Costeiros e Projeto EcoTrilhas, da Universidade de São Paulo, que premiou vários alunos e alunas de escolas públicas que produziram os audiovisuais. No que se refere aos museus, várias exposições vêm abordando o assunto das mudanças climáticas e/ou aquecimento global no Brasil e no exterior, como o Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, o Museu Goeldi, no Pará, o Science Museum, em Londres, o Biodome, em Montreal e o Ontario Science Museum, em Toronto. Na China foi criado, em 2013, um museu sobre o tema, o Jockey Club Museum of Climate Change pertencente à Chinese University of Hong Kong2.

Já se acumulam também pesquisas em ambientes formais e não formais investigando o que se sabe sobre esse tema e como se posicionam os estudantes e o público geral. Segundo Henriques e Silva (2017)3, pesquisa feita pelo Instituto Gallup indica que, em 2008, a porcentagem de americanos que acreditam que os efeitos do aquecimento global já começaram, nunca passou de 61%. Outra pesquisa do mesmo Instituto, citada pelos autores, aponta que a porcentagem de pessoas que concordam que o aquecimento global é resultado da atividade humana é, por exemplo, de 80% no Brasil, 64% na Suécia, 63% na França, 59% na Alemanha, 48% no Reino Unido e 44% na Holanda. Esses autores discutem as implicações da discussão sobre o aquecimento global e o papel das mídias e revelam também o que chamam da indústria da dúvida, envolvendo fake news e campanhas de falsas petições sobre o tema. Em âmbito nacional, uma pesquisa feito pelo DataSenado (2009) aponta que 75% dos entrevistados demonstram preocupação com as mudanças climáticas causadas pela ação humana.

Em pesquisa lançada este ano sobre a percepção pública de C&T de jovens no Brasil, desenvolvida pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT), o tema foi abordado. Os dados dessa enquete apontam que os jovens manifestam dúvidas também sobre controvérsias sociais e políticas que atravessam a ciência. Conforme aponta essa enquete, 25% acreditam que vacinar as crianças pode ser perigoso; 54% concordam que os cientistas possam estar “exagerando” sobre os efeitos das mudanças climáticas; 40% dos jovens dizem não concordar com a afirmação de que os seres humanos evoluíram ao longo do tempo e descendem de outros animais4.

Há algumas semanas atrás a revista ComCiência publicou um número todo dedicado ao tema do aquecimento global. Nela, Paulo Nobre, renomado pesquisador brasileiro do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, afirma que o termo aquecimento global não é uma novidade nas discussões científicas e vem sendo pautado desde a primeira edição do IPCC, realizada em 1979. Segundo ele, a ciência já apontava lá no passado, quando os modelos eram ainda mais imperfeitos, que havia um problema em potencial5. Então, porque ainda persistem tantos questionamentos sobre o tema?

A revista Exame de novembro de 2015 publicou artigo com o título “Por que os negacionistas do clima fazem tanto sucesso?”6. Segundo a matéria, uma pesquisa financiada pela National Science Foundation indica que os defensores das mudanças climáticas falham em influenciar a opinião pública, apesar de todo o respaldo científico que possuem a respeito do tema, enquanto os “inimigos” das mudanças climáticas exercem maior influência com suas mensagens que negam a existência do aquecimento global ou reduzem sua importância. Esse pequeno, mas poderoso exemplo revela que para além das evidências, existem as narrativas sobre os fatos e que, dependendo de quem tem o poder sobre essas narrativas, elas possuem maior ou menor grau de convencimento.

Para muitos cientistas, o problema está na desinformação ou na forma como a mídia divulga as informações sobre o tema. Além disso, destaca-se que a não compreensão de que o aquecimento global é um fato está relacionada com os interesses políticos e econômicos envolvidos. Mas, será que o problema é somente de desinformação? Bastaria “informar” bem para garantir a adesão à ideia de que o aquecimento global está aí e que o ser humano é o mais importante responsável sobre ele? E mais, o aquecimento global é realmente um consenso entre os cientistas? Se sim, será que este consenso sempre existiu na história da construção deste tema?

Entendemos que, considerando ou não o aquecimento global como uma controvérsia interna na ciência, é possível afirmar que se trata de um tema que gera, na sociedade, posicionamentos diferentes e, às vezes, contrários àqueles apresentados pela ciência. Neste sentido, nos parece que reduzir o problema  a uma questão de “fornecer mais informações” pode ser uma abordagem pouco eficaz, que não considera os resultados que as pesquisas na área de educação e comunicação pública da ciência já acumularam sobre a relação entre ciência e sociedade. Há, assim, algumas perguntas importantes a serem feitas: quais são as reais questões que são controversas neste debate: a existência do aquecimento global? O papel dos agentes causadores? A influência do ser humano? As formas de mitigação dos impactos causados?

Uma abordagem que nos parece instigante é considerar o aquecimento global e as mudanças climáticas como um tema sociocientífico. Temas sociocientíficos são aqueles que envolvem questões ambientais, políticas, econômicas, éticas, sociais e culturais relativas à ciência e à tecnologia e que são inerentes à atividade científica7. Do ponto de vista educativo, considerar o aquecimento global um tema sociocientífico e controverso implica em refletir e debater sobre as diferentes dimensões conceituais, históricas, sociais, políticas e ideológicas que envolvem sua abordagem. Esses aspectos conferem ao aquecimento global o status de um tema complexo, sociocientífico ou um “wicked problem” como alguns autores vêm chamando8. Por essa razão, consideramos esse um tema quente, potente e necessário para ser trabalhado no ensino e divulgação da ciência.

Temos a plena consciência de que hoje a quase totalidade dos cientistas concordam que o ser humano tem um papel fundamental nas mudanças climáticas. E essa ideia não é nova. Em uma revisão bibliográfica em uma base de artigos científicos, que compreendeu o período de 1993 a 2003, a historiadora Naomi Oreskes não encontrou nenhum artigo que refutasse a visão consensual de que as mudanças climáticas estão ocorrendo e que as atividades humanas são parte disso9. Na maior parte dos casos, os resultados das pesquisa reafirmam o papel humano no aquecimento global e, em outros casos, os métodos de pesquisa são discutidos, assim como os impactos e formas de mitigação. Se o debate, então, não é sobre o papel do ser humano nas mudanças climáticas, qual é o debate afinal?

Sabemos que o conhecimento sobre esse tema tem se ampliado e que as formas de coletar os dados para definição do clima são recentes e vem se aprimorando com modelos mais sofisticados. Existe hoje, inclusive, a área da paleoclimatologia que busca descrever a história do clima, de centenas a milhões de anos atrás, em um trabalho multidisciplinar que envolve geólogos, geofísicos, oceanógrafos, glaciólogos, biólogos, químicos, arqueólogos, paleontólogos, geógrafos, astrônomos, meteorologistas e matemáticos10. Há, assim, como em grande parte do processo de produção dos conhecimentos científicos, lacunas, informações incompletas, modelos sendo aperfeiçoados para a compreensão desse fenômeno. Há, também, diferentes comunidades científicas em jogo, discutindo, pesquisando, problematizando o tema11.

Como apontam Diogo Meyer e Charbel N. El-Hani (2019), a ciência não é a única maneira de aprender sobre o mundo, mas ela oferece respostas sobre questões fundamentais e vem angariando sucesso sobre muito do que hoje conhecemos. Contudo, a forma com que as concepções de “verdade” e “fato” vem sendo tratadas geram muitos problemas para compreender como o conhecimento científico é produzido. Segundo os autores, os fatos na ciência são “apenas a versão mais confiável que dispomos do conhecimento em um determinado momento”. Verdade e certeza não são características da ciência, sendo fundamental o debate, as discussões, a análise de conjunturas, a avaliação de possibilidades e riscos. No contexto atual, resultante da sociedade pós-industrial, estamos sendo afetados localmente e globalmente pelos impactos da ciência e da tecnologia, que geram  riscos e incertezas sobre o conhecimento, não existindo respostas simples para resolver os problemas (Pietrocola e Souza, 2019)12.  Contudo, existem os riscos de que instituições e grupos humanos se apropriarem da verdade, usando isso como um artifício de poder.

Neste sentido, consideramos que outras formas de conhecimento, as quais incluem visões contrárias às que a ciência propõe, devem ser colocadas em diálogo. Em especial, consideramos que, na educação e na divulgação da ciência, deve-se promover o acesso ao conhecimento sobre como a ciência é produzida (natureza da ciência) e sobre como ela – quando bem apoiada em evidências -, pode exercer seu papel social na luta contra o obscurantismo, a pobreza e a injustiça social. Isso significa reconhecer, como esclarecem Meyer e El-Hani, que existem incertezas e diferentes graus de confiança nos achados da ciência, sendo portanto, a ciência uma das melhores forma que temos para gerar novos conhecimentos, mesmo que possam ser questionados em algum momento.

No caso do tema mudanças climáticas, o consenso científico sobre a influência humana no aquecimento global significa que essa é melhor explicação para um grande e diverso conjunto de evidências coletadas até o momento. Essas evidências e as suas explicações são submetidas a constante escrutínio e cuidadosa revisão e questionamento de especialistas que, por sua vez, fazem parte de comunidades científicas diversas e independentes. É justamente esse funcionamento da ciência, com rigorosas e diversas formas de coleta de evidências, com construção de linhas de explicações baseadas nessas evidências e com a avaliação e legitimação desse processo por uma comunidade de especialistas, que permite que possamos confiar nela.

Mesmo assim, o tema do aquecimento global gera dúvidas na sociedade. Para além da desinformação e do uso político da informação – situações essas presentes desde que existe ciência e que temos que lidar constantemente em processos de educação e comunicação – é importante entender o que está em jogo neste debate. Temos, por um lado, a dificuldade de acessar informações seguras, ainda mais em tempos de fake news. Há também os desafios de compreensão dos conceitos científicos envolvidos e os questionamentos sobre os efeitos do aquecimento a curto, médio e longo prazo e a desconfiança sobre se as atitudes de mitigação individuais são eficazes. Ainda, existe um grande desafio de atuar no nível coletivo e de influenciar as políticas públicas sobre o tema. Nesta linha, a menina sueca Greta Thunber se tornou um símbolo, em meio a polêmicas e contradições, que inspirou jovens e adolescentes a caminhar pelas ruas em vários lugares do mundo neste ano de 2019, defendendo o cuidado com o planeta Terra.

Defendemos assim, uma perspectiva de ensino e de divulgação da ciência que promova a aprendizagem de conceitos, a reflexão, a análise crítica, a avaliação da possibilidades e dos riscos, a tomada de posição, mas também que incentive a ouvir, a dialogar e a respeitar a diversidade de opiniões. Consideramos que trabalhar com as relações entre ciência, tecnologia, sociedade e ambiente (CTSA) e abordar os aspectos controversos do conhecimento científico são tarefas de alta relevância, especialmente no momento atual. Valorizar outras formas de conhecimento para além da ciência e, promover o diálogo com elas, não significa dizer que assumimos um relativismo extremo, o qual considera que os diferentes argumentos da ciência ou de qualquer outro conhecimento sejam de natureza idênticas (Nielsen, 2013)13. Em tempos em que os discursos da ciência não são valorizados, perdendo sua legitimidade, imperando a ideia de pós-verdade, cabe a nós educadores e divulgadores exercer a vigilância epistemológica e nos perguntar, a todo instante, o que e a quem estamos favorecendo.

¹Oliveira, M. J. de, Carneiro, C. D. R., Vecchia, F. A. da S., & Baptista, G. M. de M. (2018). Ciclos climáticos e causas naturais das mudanças do clima. Terrae Didatica13(3), 149-184.

² http://www.mocc.cuhk.edu.hk/en-gb/

³ HENRIQUES, Marcio Simeone; SILVA, Daniel Reis. Mudanças climáticas: Uma questão de relações públicas?. Chasqui. Revista Latinoamericana de Comunicación, Equador, n. 136, p. 145-160, 16 dez. 2017-marzo 2018.

4https://www.cgee.org.br/-/pesquisa-mostra-o-que-os-jovens-brasileiros-pensam-sobre-ciencia-tecnologia-e-inovacao

5  http://www.comciencia.br/o-que-dizem-os-cientistas-sobre-as-mudancas-climaticas/

6https://exame.abril.com.br/ciencia/por-que-os-negacionistas-do-clima-fazem-tanto-sucesso/
7 SANTOS, W. L. P. dos; MORTIMER, E. F. Abordagem de aspectos sociocientíficos em aulas de ciências: possibilidades de limitações. Investigações em Ensino de Ciências, Porto Alegre, v. 14, n. 2, 2009.

8Rittel, H. W., & Webber, M. M. (1973). Dilemmas in a general theory of planning. Policy sciences, 4 (2) 155 – 169.

9 The Scientific Consensus on Climate Change Naomi Oreskes* Science  03 Dec 2004: Vol. 306, Issue 5702, pp. 1686 DOI: 10.1126/science.1103618

10Informações obtidas na matéria de Tatiana Jorgetti Fernandesda ComCiência: http://www.comciencia.br/paleoclimatologia-o-passado-das-mudancas-climaticas/

11José Bueno Conti, por exemplo, propõe uma análise das variáveis e incertezas para o aprimoramento do debate http://ojs.ufgd.edu.br/index.php/anpege/article/view/6613/3612

12Pietrocola M., & Souza C. R. de. (2019). A sociedade de risco e a noção de cidadania: desafios para a educação científica e tecnológica. Linhas Críticas25. https://doi.org/10.26512/lc.v24i0.19844

13Nielsen, J. A. (2013) Delusions About Evidence: On Why Scientific Evidence Should Not Be the Main Concern in Socioscientific Decision Making, Canadian Journal of Science, Mathematics and Technology Education, 13:4, 373-385, DOI:

Imagem de destaque: Arek Socha / Pixabay

 

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