Michel de Montaigne, um educador freireano

Carlos André Martins Lopes*

Painel Paulo Freire no Centro de Formação, Tecnologia e Pesquisa Educacional Prof. “Milton de Almeida Santos”, SME-Campinas. Luiz Carlos Cappellano

O título desse texto constitui-se como uma provocação. Paulo Freire foi um educador brasileiro do século XX; Michel de Montaigne, um pensador francês do século XVI. Acredito que esta informação baste para explicar o que chamei de provocação.

Michel de Montaigne escreveu sobre diversos assuntos, reservando um espaço em seus Ensaios para tecer críticas aos educadores de sua época, bem como aos seus métodos de ensino. Paulo Freire dedicou-se exclusivamente ao tema da educação, sendo o inventor de um método de alfabetização de adultos estudado e aplicado em diversos sistemas educacionais do mundo.

Patrono da educação no Brasil, Paulo Freire, ao passo em que é estudado e comentado em grandes centros de produção de conhecimento do mundo, tem sido alvo de críticas mordazes por parte de movimentos autodenominados de Direita conservadora. Em texto publicado na página do “instituto Liberal”, intitulado “Paulo Freire e o assassinato do conhecimento”, o autor afirma que o educador brasileiro, sendo marxista, “implantou a luta de classes na sala de aula”, transformando a educação numa prática de “doutrinação ideológica”. O autor do citado texto ainda afirma que o criticismo introduzido em sala de aula por inspiração freireana se transformou tão somente em “crítica ao sistema capitalista”.

A aplicação do pensamento marxista em sala de aula resultou na introdução, na visão dos detratores de Paulo Freire, da luta de classes no ambiente escolar; a crítica ao sistema capitalista, logo, a incitação à mudança, à superação desse sistema, caracterizaria o que passou a ser denominado de educação ideológica.

Cabe citar aqui que a aplicação acrítica de uma teoria a uma realidade qualquer era uma prática amplamente questionada por Paulo Freire. Portanto, acusá-lo de reproduzir a teoria marxista no ambiente escolar constitui-se como uma forma pouco honesta de entender a complexidade do pensamento freireano. Além disso, tirar o mérito do método freireano simplesmente porque ele procura promover a conscientização do sujeito educando acerca do mundo no qual ele está inserido, o que equivale a promover,nesse sujeito, a habilidade de desvelar situações de injustiça, de relações de poder degradantes para determinados grupos sociais, é, na verdade, uma maneira de acusar nos outros aquilo que o próprio acusador pratica. O que os críticos de Paulo Freire querem é preservar as relações de poder existentes no mundo capitalista, os sistemas de cultura dominantes, eliminar a possibilidade de que os grupos hegemônicos percam suas posições de privilégio. Querer impedir que o sujeito seja capaz de pensar por si mesmo constitui-se como uma forma ideológica de pensar.

Mas voltemos à relação entre Montaigne e Freire. O educador pernambucano acusava o sistema educacional brasileiro de praticar uma “educação bancária”, prática que consistia em fazer dos educandos meros objetos passivos, nos quais eram-lhes depositados os conteúdos por parte do sujeito, o professor. Na condição de objetos, os educandos deveriam estar silenciados, passivos, mudos. No sistema descrito por Freire, apenas assumindo a condição de seres dos quais a palavra fora-lhe confiscada é que o aluno estaria apto a encher-se do conhecimento fornecido pelo professor, este, representado como o dono do saber. Depois de introjetado o conteúdo, tudo seria aferido por meio de testes quantitativistas, nos quais o educando, objetificado, deveria mostrar o quanto de conteúdo pôde ser atulhado em sua mente. A sala de aula, nessas condições, para Freire, é a representação da sociedade capitalista, na qual o professor fala em nome dos grupos hegemônicos e os alunos se submetem, aprendendo a reproduzir a atitude dos grupos sociais objetificados, tais quais os alunos, pelas práticas de exercício do poder postas em uso pelas classes hegemônicas.

Será que o exposto é suficiente para descobrirmos um Karl Marx sob as vestes do educador Paulo Freire? Talvez. Não sejamos tão apressados, contudo. Leia-se o que Michel de Montaigne escreveu, procurando exprimir a voz do educando, em pleno século XVI, acerca dos professores da época: “Não cessam de nos gritar aos ouvidos, como que por meio de um funil, o que nos querem ensinar, e o nosso trabalho consiste em repetir” . Montaigne expressava sua preocupação com tal modelo afirmando que: “Certamente tornaremos a criança servil e tímida se não lhe dermos a oportunidade de fazer alguma coisa por si”.

A citação acima nos leva a perceber que Montaigne, séculos antes de Freire, formulou, com palavras diferentes, a mesma crítica que o pensador pernambucano teceu em sua obra acerca do modelo educacional vigente no Brasil da secunda metade do século XX. Correndo o risco de ser anacrônicos, podemos até afirmar que a prática descrita por Montaigne constitui-se precisamente como um modelo de educação bancária, no qual o professor fala e o aluno escuta; depois ele repete tudo o que ouviu, considerando-se aprendido o conteúdo que foi repetido tal qual lhe fora transmitido. Montaigne compara essa prática com a da ingestão de alimento seguida pelo vômito, sendo “indício de azia e indigestão vomitar a carne tal qual foi engolida”, o que significa que a comida devolvida/vomitada não foi adequadamente digerida pelo estômago. Considera-se, desta forma que o “estômago não [fez] seu trabalho…[pois] não [mudou] o aspecto e a forma daquilo que se lhe deu a digerir”. Para Montaigne, o conhecimento só pode ser classificado como tal se ele foi adequadamente transformado por meio de um processo mental.

Visando a superação desse estado, Montaigne escreve nos seguintes termos: “Não quero que [o professor] fale sozinho e sim que deixe também o discípulo falar por seu turno”. A citação revela que o pensador francês defendia uma educação na qual o educando pudesse estabelecer diálogo com o educador, uma educação que possibilitasse ao educando um lugar de sujeito, que criasse as condições que levassem o aluno a encontrar as próprias respostas para questionamentos lançados.

Paulo Freire também criticou outro aspecto da educação dissertadora, outro nome para a educação bancária, qual seja, a de valorizar apenas a “sonoridade” das palavras. Ao invés disso, o educando deveria apreender a força transformadora da palavra, o significado profundo dos vocábulos e o seu uso igualmente transformador em diversos contextos sociais. Também nessa ideia encontramos paralelos evidentes entre o pensamento freireano e o do pensador francês, conforme podemos conferir na citação que se segue: Que não lhe peça conta apenas das palavras da lição, mas também do seu sentido e substância, julgando do proveito, não pelo testemunho da memória e sim pelo da vida. Além de se opor, tal qual Freire, a uma educação baseada no discurso e na repetição, nota-se que Montaigne defendia uma educação que instrumentalizasse o aluno com saberes úteis à vida, saberes que sirvam para que o estudante possa deles fazer uso para entender e transformar o mundo.

Montaigne procurou fundamentar suas afirmações no pensamento socrático. Afirma o pensador francês que Sócrates não iniciava uma aula sem que levasse o discípulo a falar. Toda a aula, inclusive, acontecia por meio do diálogo, no qual o discípulo era levado a encontrar as respostas para as próprias perguntas.Isso é suficiente para mostrar que Freire procurou fundamentar suas afirmações recorrendo ao que de melhor se produziu no mundo ocidental acerca do assunto.

* Licenciado em História pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), mestre em história pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e professor da rede pública de ensino do estado da Paraíba e do Município de João Pessoa, PB.

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