Patrícia Cardoso da Costa1
Em 2022, será comemorado o bicentenário da Independência do Brasil. Como comemorar essa independência? Há quase duzentos anos, muita luta foi travada para que o vínculo com a metrópole portuguesa fosse desfeito. Consolidar o Estado Nação era o objetivo primeiro e, para isso, também era necessário formar, instruir, unir e civilizar o povo brasileiro. Neste contexto, não ficou de fora a preocupação com a educação formal das meninas e mulheres, mesmo que tal preocupação se constituísse uma tensão com os discursos mais conservadores de uma sociedade que se baseava no patriarcalismo, para quem, à mulher, cabia os cuidados com a casa e família.
Cinco anos após a emancipação brasileira, temos a criação da Lei Geral do Ensino, de 15 de outubro de 1827, que procurou organizar as escolas públicas do ensino elementar. Nela, pela primeira vez, aparecia o ensino primário para o sexo feminino como uma política pública. A medida, em prol da democratização do acesso à escolarização, determinava que “Haverão escolas de meninas nas cidades e villas mais populosas, em que os Presidentes em Conselho, julgarem necessario este estabelecimento” (art.11). Para ambos, meninos e meninas, o ensino elementar consistiria em “ler, escrever as quatro operações de arithmetica, pratica de quebrados, decimaes e proporções, as nações mais geraes de geometria pratica, a grammatica da lingua nacional, e os principios de moral christã e da doutrina da religião catholica e apostolica romana, proporcionandos á comprehensão dos meninos; preferindo para as leituras a Cosntituição do Imperio e a Historia do Brazil” (art. 6). Ou seja, o dever e o direito das meninas aprenderem a ler e escrever estava assegurado pela lei, além das aulas de prendas domésticas, agulha e bordado como se via sobretudo nos colégios particulares para elas.
Em relação ao ensino secundário, em 1837, é inaugurado o Imperial Colégio de Pedro II. Exclusivamente para meninos. A presença de meninas nessa instituição só iria acontecer quase meio século depois, em 1883, quando Dr. Cândido Barata Ribeiro matriculou suas filhas no renomado colégio. Em 1885, já eram 15 moças matriculadas, mas essa presença ainda rendeu muitos debates, com propostas de proibição da presença delas, com a legações diversas, inclusive financeiras, quando se justificava a impossibilidade de contratar inspetoras mulheres para o cuidado das meninas no estabelecimento. Às meninas havia a possibilidade do ensino secundário na malha privada, com grande e variada oferta de estabelecimentos, ou mesmo a Escola Normal da Corte, o Liceu de Artes e Ofícios, ou cursos Noturnos Secundário, como o que foi fundado pelo professor José Manoel Garcia.
As imagens trazidas ao texto ajudam a evidenciar a diversidade do ensino naquele período. O Collegio Almeida Bastos, por exemplo, oferecia no anúncio publicitário o ensino feminino de primeiras letras e o ensino secundário. E, no mesmo lugar, embora separados fisicamente, poderiam estudar também os meninos.
Podemos observar também a oferta de um curso noturno gratuito do ensino secundário para o público feminino. O prédio era o do Externato Pedro II (apenas o prédio era usado!), sem haver qualquer relação do ensino secundário com a instituição. Para que o curso noturno pudesse funcionar, havia colaborações de donativos. O que indica a ação da sociedade civil diante das lacunas do Estado em prol da escolarização da população. E o fato de essa iniciativa ser noturna pode indicar também a presença de mulheres e jovens trabalhadoras em busca da formação escolar para além do nível primário ou elementar do ensino. Pois o perfil do público que acessava o turno da noite geralmente era composto por pessoas impedidas de frequentar a escola durante o dia em razão de atividades profissionais.
Ao longo do Império, grande parte do público escolar do ensino secundário era composto por meninos. A eles também era possível acessar os preparatórios, que formavam e orientavam para a realização dos exames para acesso às faculdades de ensino superior no Brasil Oitocentista, como Faculdade de Direito, Medicina, Farmácia e outras.
As faculdades do Império, principalmente a de Medicina, só passaram a aceitar alunas a partir de 1879 (Decreto Nº 7.247, de 19 de abril). No seu Art. 24, § 20, informa que: “E’ facultada inscripção de que tratam os §§ 16, 17, 18 e 19 aos individuos do sexo feminino, para os quaes haverá nas aulas logares separados”. E, posteriormente, em 1881 (Decreto Nº 8.024, de 12 de março), também ficou indicado que: “É facultada a inscripção de que tratam os artigos precedentes aos individuos do sexo feminino, para os quaes haverá nas aulas logares separados” (Art. 16). Rita Lobato Velho Lopes, em 1887, tornou-se a primeira mulher brasileira e a segunda latino-americana a obter diploma de médica, após defender tese sobre A Operação Cesariana.
Somente a partir da década de 1970 é que o público feminino chega a ser 40% do total dos estudantes de ensino superior. E o primeiro censo nacional, de 1872, mostra que 64% das mulheres eram analfabetas. Quantas independências tardias!
Para comemorar esses duzentos anos de emancipação política brasileira, precisamos refletir sobre o papel da escola, ontem e hoje. E sobre as lutas, presenças e ausências femininas. Caso contrário, corremos o risco de festejar, em 2022, uma histórica inacabada da independência do Brasil e das brasileiras.
1 – Formada em Letras pela UERJ, estudante de Pedagogia e pesquisadora integrante do Núcleo de Ensino e Pesquisa em História da Educação (NEPHE/UERJ).
Para saber mais:
Gazeta de Notícias, 28/07/1880.
Gazeta de Notícias, 27/01/1884.