Gelatina de uva – um arquivo de infâncias

Ivane Perotti

Vermelha, terra solta, a rua ligava esperanças. Em dias secos, a poeira virava pó. De mico. Até a alma coçava brotoejas no bojo encriptado. Nos aguaceiros, o barro crescia como merengue. Escuro. Grudento. Atoleiro de causas perdidas. Nem sempre eu espiava o mundo pela janela. O barro desenhava uvas de sabão. Tina comprida. Barrancos de saudade. Era o momento de calçar os pés na vida. Resistir ao crescimento desavisado. Nem criança. Nem adulto. No meio de um caminho que fazia da rua o seu maior legado. Desgosto para os mais velhos, o barro volumoso cobria o leito da passagem. Emergia como terra fermentada. Revirada. Úmido: resvaladiço. Seco: perigoso camaleão. Rodas em trânsito. Pés no chão. 

Plantava roseiras, poucas. E cravos, semeados logo acima da rua. Protegidos por um pé de Araticum-Cagão, entre o sol e as chuvas, blindavam-me das intempéries internas. Cravos vermelhos. Rosas-chá. Um jardim de não ditos.

– Tem gelatina de uva, Eti?

Janette chegou a tiracolo do irmão, bem a tempo de me ver “plastificar” uma rosa. Queria proteger aquele milagre floral da “chuva-cabeça-de-martelo”. Os pingos, cabeçudos, batiam sem dó nas pétalas imberbes. Novas. Primeira floração. A água descia gorda. Ininterrupta. Marteladas de titã.

A voz da menina arrastou-me à realidade em outro buraco de minhoca.

– Odeio minhocas! Odeio! Elas comem sabão. Que ecaaaaaa!!!

O irmão, maior, já a protegia da chuva sob a minúscula entrada de nossa casa. Sorria. E aquele sorriso era um lenitivo. Dele para a rosa, pensei que melhor a protegeria um guarda-chuva. Absorveria o impacto das cabeças líquidas. 

– Nem vem! Não apronta mais nada que por hoje já passou da conta! Vem atender as crianças! – 

Minha mãe, por esses tempos, preocupava-se ainda menos com as subjetividades. A vida cobrava-lhe movimentos. E ela dava conta da roda de fogo destilando bravuras. Brevidades.

Janete e Joel faziam parte do fluxo benéfico da rua. Especialmente nos dias de “chuva-cabeça-de-martelo”. Vizinhos, amigos e desejadas visitas, eram partes de outras histórias que a rua contava. Em casa, éramos três crianças, a depender da ocasião. Não tínhamos acesso a guloseimas. Cabia-nos no bolso o pó de gelatina. Colorido e intrigante, enchia a tigela que descansava na geladeira. Gelatina de uva. Um espelho móvel. Teimoso. Dançava na colher a caminho da boca. Da imaginação que não colhia rosas. Abria necessidades. Refúgios. Espaços de preenchimento. Éramos cinco a reconhecer a importância da geladeira. Utensílio quase novo, ornava a cozinha com sua boca fria e iluminada. De um lado, ela. Do outro, o fogão à lenha. Bocudo, também. Iluminado pelas lágrimas verdes que chiavam a morte para acender a vida. A vespertina e colorida cerimônia da gelatina de uva nos tirava do comum. Mesmo repetindo-se por todo o verão.

Voltei às condições da roseira. Uma rosa. As marteladas que batiam na janela também espancavam o meu pequeno milagre. A gelatina descansou no prato, para espanto da mesa tagarela. Com a minha irmã no colo, não conseguia desembestar para o minúsculo jardim. O meu rosto contraía-se a cada pingo da chuva. Chuva da estação. Água fria nos poucos dias de calor que abriam ordens maternas. Detestava as ordens dela. Minha mãe não mandava. Ordenava. Entre chispas oculares. Nem precisava abrir os lábios. Detestava. 

Joel entendeu o meu desespero. Sempre compreendia. Apenas dois anos mais novo, reconhecia o lugar do obedecimento. Era líder em consequências. Silenciosamente, levantou-se. Meu irmão correu atrás. Inseparáveis. Até o limite dos limites de minha mãe. A gelatina paralisou o meu desespero. Pela janela, vi o meu amigo abrindo, calmamente, o velho guarda-chuva. Protegida, a rosa-chá. Plastificada. Agora salva pelo tecido gasto e completamente aberto.

– Joel! Sai da chuva! A sua mãe me mata se você adoecer.

Era o acordo inaudível entre as mães esboçando a sua vastidão profunda e inquebrável. Um acordo que ultrapassava paredes e paradas. Responsabilizada pela atitude de meu amigo, corri em busca de toalha e roupa seca. Ele sorria. Com os pingos a desmancharem-se sobre os cabelos lisos. A cumplicidade não emite notas. Afina-se. Ponto. Mas para o meu irmão, a coragem do amigo merecia cumprimentos. E alguns comentários em voz baixa. Janete afastou o hiato.

– Mais!

A gelatina de uva era a sua preferida. A nossa. Só existiam dois sabores no pequeno mercado da cidade. Pequena cidade do interior. Dos dois, um. Uvas. Com certeza. Uvas e vinhos estavam mais próximos do universo lírico de todos nós. Misturavam-se aos ritos culturais como o barro que nos inspirava. A terra em levedura convidava mãos da infância. Olhares de “não pode” fuzilavam as cadeiras ocupadas. Em resposta, o silêncio. Pelo menos até a hora de J. e J. voltarem para casa. Esperava-os o barro virgem. Como folha em branco espera a letra. O barro jogava ideias do impossível sobre o leito movediço de nossa rua. Felizardos! Uma caminhada de poesia. Carimbos na terra mole. Expressões da “chuva-cabeça-de-martelo”. Digitais da estação e de mais uma tarde arquivada em gelatina. Ou barro. Memórias que dançam e não vão embora. Fermentam.


Imagem de Destaque: Heitor Novaes

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