Natalino Neves da Silva1
Considerar que a Educação de Jovens e Adultos (EJA) é uma modalidade de ensino negra pode parecer uma defesa, num primeiro momento, bastante contundente, não é mesmo? Porém, se olharmos de perto o perfil étnico-racial das pessoas jovens, adultas e idosas que ali estão presentes, não deixa dúvida de que essa afirmação, na verdade, não passa de uma mera constatação.
Essa percepção nos provoca, então, às seguintes indagações: quais são os motivos sociopolíticos e educacionais que levam essa parcela da população a estar sobrerrepresentada nessa modalidade de ensino? A presença estudantil negra é capaz de impulsionar outras e novas práticas educativas? No âmbito das políticas educacionais, há algum tipo de correlação entre a desvalorização da EJA e os sujeitos atendidos que a ela têm direito?
O foco na questão racial não tem como pretensão desconsiderar outros relevantes marcadores sociais (classe, gênero, etário, orientação sexual, deficiência etc.) que incidem sobre o perfil discente, mas sim suscitar o debate, sobretudo, aos profissionais da educação que atuam nessa modalidade de ensino, a respeito dos significados de desenvolver práticas educativas no contexto de uma “EJA popular negra”.
Nesse sentido, os dados divulgados pelo Censo Escolar realizado em 2019, pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) não deixam dúvidas de que a maior parte dos estudantes matriculados nessa modalidade de ensino são negros(as): “pretos e pardos predominam nos dois níveis de ensino. No fundamental, o grupo representa 75,8% dos estudantes, enquanto, no nível médio, 67,8%. Os alunos que se identificam como brancos compõem 22,2% da EJA fundamental e 31% da EJA médio” (INEP, 2020, p. 5).
Assim sendo, o trabalho educativo a ser realizado nessa modalidade de ensino necessita tratar, sob o ponto de vista da resistência, as diferentes expressões, lutas e contribuições dadas pela população afro-brasileira e indígena ao longo da história, conforme previsto na Lei nº 10.639/03 (11.645/08 – atualização) e de suas Diretrizes, no que concerne ao ensino de história e cultura afro-brasileira, africana e indígena.
Nesse caso, a abordagem relacionada à Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER) a ser desenvolvida na EJA requer a criação e recriação de práticas educativas que, muitas vezes, inexistem, ou que são realizadas de maneiras incipientes e pouco sistematizadas. Por conseguinte, essa orientação político-pedagógica relacionada à promoção da igualdade étnico-racial implica, necessariamente, ampliar os referenciais epistemológicos formativos (SILVA, 2020).
O convite para pensar em torno de uma EJA popular negra nos exige, portanto, a capacidade de desnaturalizar desigualdades e assimetrias sociorraciais históricas que incidem, especialmente, sobre pessoas jovens, adultas e idosas negras moradoras de vilas, favelas e aglomerados dos centros urbanos e/ou de regiões rurais que tiveram os seus direitos social e humano à educação negligenciados.
Todavia, reconhecer desigualdades sociorraciais que atingem o público estudantil negro não significa tratá-los(as) como se fossem incapazes de serem protagonistas de suas próprias histórias de vida. Muito menos pensar que eles(as) se colocam como seres passivos ou, até mesmo, apolíticos ante o contexto social opressor. Pelo contrário. Esse tipo de postura, inclusive, impossibilita-nos entender a forma estrutural e estruturante na qual se concretiza o racismo nosso de cada dia. Como bem diz o rapper Emicida em sua letra de música AmarElo:
“Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Achar que essas mazelas me definem é o pior dos crimes
É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóiz sumir”.
Assim sendo, a construção de práticas educativas na perspectiva da ERER busca contar com a participação ativa dos próprios atores sociais em seu processo de produção, ocasionando, com isso, a necessidade de romper com todo e qualquer tipo de práticas de escolarização de caráter bancário, como nos ensinou o educador Paulo Freire.
Em se tratando de garantir a efetividade do direito social e humano à EJA, o desafio de erradicar o racismo, o preconceito e a discriminação racial está posto também para os profissionais da educação. Assim sendo, reconhecer que a EJA se constitui como uma modalidade de ensino negra pode ser um primeiro e importante passo nesta direção.
1 – Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais.
Para saber mais:
INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo Escolar da Educação Básica, 2019. Brasília: Ministério da Educação, 2020. Acesse aqui.
SILVA, Natalino Neves da. Educação Popular Negra: breves notas de um conceito. Educação em Perspectiva, Viçosa, MG, v. 11, p. 1-15, 2020. Acesse aqui.
Imagem de destaque: Acervo Cras Vila Fátima, professora Juliane Gomes de Oliveira.