Educar nas encruzilhadas

Flávia Fernandes de Carvalhaes1

Nos últimos dias tenho seguido por algumas trilhas que a obra “Pedagogias das Encruzilhadas” de Luiz Rufino (2019) faz circular. Na tentativa de me “imamcumbá” em meio a tanta brutalidade no Brasil, busco nos encontros com a noção de encruzilhada reavivar encantamentos necessários para a escrita desse texto. 

Encruzilhada exige orientação geopolítica desde o sul, pois remete à pluriversalidade dos saberes e a valorização dos modos locais de pensar, de sentir e de se relacionar. Como produção que se articula no intercruzamento entre rumos, como “umbigo do mundo” (p.17), a perspectiva da encruzilhada reivindica mundos diversificados, multilíngues. Logo, em coalizão à oferenda analítica da noção de interseccionalidade (Carla Akotierene, 2019), as pedagogias das encruzilhadas tencionam guerrilhas linguísticas que coexistem em disputa também na área da educação, e que são, necessariamente, constituídas na conexão entre marcadores de raça, classe e gênero, entre outres. 

A noção de guerrilha linguística me remete à imagem de um campo de forças, em que pressupostos científicos articulados nas geografias binárias da colonialidade do saber, construídos em referência a experiências brancas, masculinas e eurocentradas, coexistem com saberes bordados por línguas mestizas indomáveis, que reivindicam se deslinguar dos parâmetros coloniais e a fazer dançar modos decoloniais de pensar, de sentir e de educar. 

Línguas mestizas são tecidas nas fronteiras entre territórios, como produções interseccionais, “nem águia[s] nem serpente[s], mas as duas” (Glória Anzaldúa, 2009, p. 315). Como sobreviventes, as línguas “selvagens” convocam a transcender as dualidades do pensamento, a traçar rotas inusitadas, a agir ao invés de reagir. Ao reivindicar a reinterpretação da história a partir de novos símbolos e mitos, nos faz questionar sobre modos outres de vivenciar a educação, que nos desloquem das posições “privilegiadas” onde estamos e a indagar sobre fissuras possíveis nas matrizes do CIStema. 

No intento de contribuir para superar a tradição do silêncio que, historicamente, subalterniza e desqualifica conhecimentos circunscritos como periféricos, me parece que a pedagogias das encruzilhadas sinaliza um “caminho possível à exploração das fronteiras, aquelas que, embora tenham sido construídas a priori para cindir o mundo, nos revelam a trama complexa que o codifica” (Luiz Rufino, 2019, p. 17/18). 

La frontera, como ficção colonial, assume dimensão política ao se constituir como possibilidade analítica, como categoria relacional entre territórios, espaço cujas diferenças se delineiam e se atualizam entre racionalidades normativas, instituídas, periféricas, marginais, fugitivas. Assim, desde a potência das fronteiras, Luiz Rufino nos oferta “mandigas” desse viés pedagógico, ao sinalizar perspectivas políticas, poéticas e éticas que a constitui.

A pedagogia das encruzilhadas assume como sul, a importância de se localizar contra o racismo anti-negro e os processos de classificação e hierarquização do mundo em arquiteturas binárias, sendo a diversidade reivindicada como possibilidade de preservação da vida. Em aliança a essa prerrogativa, destaco a importância de dialogarmos em sala de aula e em nossas pesquisas com epistemologias afro-diaspóricas e indígenas, sobretudo latino-americanas. Convidar Lélia Gonzales, Conceição Evaristo, Ailton Krenak, Kaká Werá, entre outres, para produção de despachos nas encruzilhadas do saber. 

Defender a vida em sua diversidade implica, necessariamente, em sustentar uma perspectiva pedagógica que intersecciona à dimensão epistemológica do conhecimento a saberes poéticos, em destaque aqueles que foram subalternizados e circunscritos como descartáveis. Assim, outras linguagens assumem o processo educativo, possibilitando, como aponta Glória Anzaldúa, a escrever [e acrescento educar e aprender] com olhos de pintora, com ouvidos de musicista e com pés de dançarina. 

A pedagogia da encruzilhada abre também caminhos para uma dimensão ética de reinvenção da vida, para que configurações existenciais plurais possam nascer e respirar de modos justos e igualitários. Desse modo, conhecimento, arte e vida se encontram no umbigo do mundo, afirmando a educação em sua potência de transgressão, de criação e de construção de um mundo para todes. 

Destaco, por fim, sobre a importância de sustentarmos guerrilhas linguísticas na área da educação, que produzam deslocamentos e inversões nas relações de interpelação. Experimentar a educação a partir da noção de nós, como coletividade que questiona o olhar (eu)rocentrado. O Nós que não é uma pluralidade de eus, mas sim uma postura ético-política, um processo de criação de modos inventivos de existir, de circular, de pesquisar e de ensinar. 

 

1 – Integrante do grupo de pesquisa “entretons: gênero e modos de subjetivação” e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UEL/PR. Email: fcarvalhaes@uel.br

 

Para saber mais:
Akotiereme, Carla. (2019). Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Poén.

Anzaldúa, G. (2005). La conciencia de la mestiza a conciencia de la mestiza a conciencia de la mestiza / Rumo a uma nova consciência. Estudos Feministas, Florianópolis, 13(3): 704-719, setembro-dezembro.

Rufino, Luiz. (2019). Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial.


Imagem de destaque: Pexels

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