Nanda Isele Gallas Duarte1
Brunah Schall2
Bráulio Silva Chaves3
Ulla Macedo4
Pesquisas têm problematizado como a crise da COVID-19 aprofunda iniquidades de gênero, como constatado em pandemias anteriores.1 Para ampliar o conhecimento dos diferentes efeitos da crise sócio sanitária sobre homens e mulheres no Brasil, assim como a diversidade de resposta às suas consequências, um conjunto de institutos de pesquisa do país estão desenvolvendo o projeto COVID-19: riscos, impacto e resposta de gênero, coordenado pela Fiocruz Minas Gerais.
Integra o projeto o estudo Pandemia de COVID-19 e práticas reprodutivas das mulheres no Brasil, cujo objetivo é conhecer os efeitos da pandemia sobre a saúde sexual e reprodutiva das mulheres. O componente quantitativo desse estudo foi lançado em 15 de julho, com a difusão de um questionário virtual. Marcadores sociais da diferença, como escolaridade, raça/cor e etnia e região de residência são investigados, a fim de permitir, futuramente, uma análise sob o marco teórico-analítico da justiça reprodutiva. Esta noção parte da premissa que o desfrute dos direitos e da saúde reprodutiva é interditado quando a sexualidade e a reprodução são vividas em situações em que confluem injustiças econômicas, sociais e políticas, discriminações e violências 2,3. Na fase qualitativa do estudo, em setembro, serão aprofundadas questões identificadas a partir do questionário.
Outra esfera do projeto contempla entrevistas em profundidade com mulheres de áreas urbanas de Belo Horizonte e São Paulo e de áreas rurais de comunidades quilombolas do Vale do Jequitinhonha. O objetivo é entender o impacto da pandemia em diversos âmbitos, principalmente saúde, trabalho e renda, sob uma perspectiva interseccional. Desde o final de 2020, já foram entrevistadas 28 mulheres das áreas urbanas e 18 das áreas rurais, a maioria à distância, devido às restrições da pandemia.
Dificuldades e barreiras ao acesso a cuidados de saúde sexual e reprodutiva impostas ou agravadas pelo contexto da pandemia são apontadas por outros estudos 4,5 , expressando violações aos direitos humanos das mulheres. Histórias contadas pelas mulheres participantes dos estudos mencionados dão materialidade a esses achados. Compartilhamos, a seguir, alguns trechos sobre contracepção e pré-natal na pandemia, observando que esses estudos ainda estão em curso e abarcam outras temáticas, que serão posteriormente publicadas.
Acesso à contracepção
Histórias sobre o DIU – dispositivo intra-uterino, método dependente de assistência médica – expressam as dificuldades de acesso a cuidados de saúde reprodutiva na pandemia: medo de contaminação nos serviços de saúde, redução de serviços e situação econômica deteriorada são barreiras mencionadas.
Uma mulher de cerca de 30 anos, da cidade de São Paulo relata: “Meu DIU vence esse mês e não quero sair de casa para trocar por medo de me contaminar”. O medo da doença levou uma estudante do Rio de Janeiro a correr outros riscos: “Eu estava usando DIU antes. Durante a pandemia ele saiu do lugar e tive muito sangramento, mas com medo de sair de casa não fui me tratar, fazer ultra e remover. Demorei 6 meses para ter coragem porque fiquei anêmica e não pude mais adiar”.
Uma residente de Piracicaba/SP, 30 anos, testemunha a reduzida oferta desses serviços durante a pandemia: “estou com o DIU Mirena já vencido, me sinto perdida, pois o ginecologista com que me consultei não me esclareceu qual medida devo tomar. O SUS não está fazendo o procedimento de troca ou retirada do DIU, não sei se posso utilizar outro método ”.
Em comunidades quilombolas do Vale do Jequitinhonha, a principal dificuldade é o transporte: as mulheres precisam se deslocar até cidades mais próximas para obter contraceptivos. Durante a pandemia, essa dificuldade se acentuou, como conta Maria, 32 anos, usuária de anticoncepcional injetável trimestral: “(..) a passagem aumentou depois da pandemia, você ia com R$7,00 para a cidade, agora, já é quase R$11,00. Para quem não tem salário, só tem mal o auxílio, né? Aí desse auxílio é para você tirar tudo.” Aparecida, de 30 anos, gasta quase 40 reais para ir à cidade, por isso: “(…) eu já deixo para pegar (a pílula na farmácia popular) no dia que eu já vou fazer a feira… uma data faz dois, né, porque a passagem é muito cara.”
Acesso ao pré-natal
Quanto ao pré-natal, as mulheres se queixam da falta de informação, de profissionais especializados, de acesso a exames, em especial o ultrassom, e de visitas domiciliares da atenção primária.
“Não sei como que é essa coisa de pré-natal”, comenta Andréa, 27 anos, grávida de sete meses. Na sua primeira gravidez, ela ressente-se de ter realizado apenas um ultrassom e duas consultas em todo a gravidez. Sua próxima consulta será 15 dias antes da data prevista do parto, o que preocupa: “(…) eles não sabem da saúde do bebê. Não sabe o peso, não sabe se tem alguma síndrome.” Andréa acredita que esses problemas têm relação com a pandemia, pois amigas residentes na mesma região do aglomerado Cabana do Pai Tomás (Belo Horizonte) que pariram antes desse período foram bem assistidas.
Fabiana, 25 anos, do mesmo bairro que Andréa, relata que uma amiga chegou a perder o bebê: “antes de ela perder a criança, ela ia fazer o pré-natal, só que não tinha marcado e nem tinha previsão para quando ia ser marcado, ela ficou meio sem saber como acompanhar essa gravidez e acabou que, infelizmente, ela perdeu essa criança.”
As dificuldades envolvem tanto mulheres que não conseguem o atendimento procurado, como aquelas que não o buscaram por receio de se expor. Assim, uma moradora do Rio de Janeiro, na faixa dos 30 anos, em licença maternidade, conta: “Fiz menos consultas e exames pelo SUS no pré-natal pois tive muito medo de pegar COVID no posto. Não estou realizando todas as consultas de rotina da bebê pelo mesmo motivo”.
Este medo se justifica em um cenário crítico para as gestantes no país: dos casos registrados de morte materna associados à pandemia, a maioria (77%) ocorreu no Brasil.5 Como demonstram os relatos, as causas são estruturais, afetam as mulheres desde a contracepção até o engravidamento e, portanto, demandam políticas públicas voltadas para a saúde sexual e reprodutiva de forma integral, com foco na garantia de justiça reprodutiva.
1 – Mestre em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz), especialista em Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos pelo mesmo programa, bacharel em Comunicação Social com ênfase em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atua com comunicação em saúde e direitos humanos e pesquisa direitos sexuais e reprodutivos. E-mail: nandaisele@gmail.com.
2 – Pós-doutoranda da Fiocruz/MG no campo da Saúde Coletiva. Doutora e mestre em Sociologia pela UFMG. Graduada em Ciências Biológicas (bacharelado), com formação complementar em Divulgação Científica pela mesma instituição. Atualmente suas áreas de interesse em pesquisa são: ciência e religião, gênero e saúde e controle de vetores. Email: brunah.schall@gmail.com.
3 – Pós-doutorando da Fiocruz/MG no campo de Saúde Coletiva. É doutor em História pela UFMG e Professor do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG), no Departamento de Ciências Sociais e Filosofia. Atualmente, é coordenador do GEPTT (Grupo de Estudos e Pesquisas em Trabalho e Tecnologias) e tutor do “PET-ConecTTE-CEFET-MG, Conexão Interdisciplinar: Trabalho, Tecnologias e Educação” (Programa Institucional de Educação Tutorial do CEFET-MG). Coordena projetos de extensão popular e divulgação e popularização da ciência em aglomerados de Belo Horizonte. Na pesquisa, trabalha com os Estudos CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade), História das Ciências da Saúde e com a Educação em Saúde. Email: brauliosc1@gmail.com.
4 – Mestre em Ciências Sociais, com concentração em Antropologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Graduada em Artes e em Ciências Sociais, com concentração em Antropologia, pela mesma universidade. Analista da Fiocruz Bahia. E-mail: ulla.romeu@gmail.com.
Para saber mais:
Wenham, C.et al. Women are most affected by pandemics — lessons from past outbreaks. Nature,. 583:194-202, 2020.
Roberts, D. Reproductive Justice, Not Just Rights. Dissent. Fall. 2015.
Ross, L.J. Reproductive Justice as Intersectional Feminist Activism. Souls. A Critical Journal of Black Politics, Culture, and Society. 19:3, 286-314. 2017.
Reis AP et al. Desigualdades de gênero e raça na pandemia de COVID-19:implicações para o controle no Brasil. Saúde em Debate. Rio de Janeiro, V. 44(4): 324-340, 2020.
Takemoto M, et al. The tragedy of COVID‐19 in Brazil: 124 maternal deaths and counting. International Journal of Gynecology and Obstetrics [on-line], n. 13300,:1-3, . 2020.
Notas:
O projeto COVID-19: riscos, impacto e resposta de gênero é realizado de forma multicêntrica em vários países. No Brasil, envolve pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz, Universidade Federal de Minas Gerais, Universidade Federal da Bahia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, entre outras instituições, com o apoio do Observatório COVID-19 da Fiocruz.
Foram adotados nomes fictícios ou ocultados, para garantir a privacidade e o anonimato das mulheres.
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Este texto integra uma parceria entre o Pensar a Educação, Pensar o Brasil 1822/2022 e o Instituto René Rachou (Fiocruz) para promover ações e reflexões em torno da Educação para a Saúde.
Imagem de destaque: Fiocruz