Marcus Aurelio Taborda de Oliveira
Alexandre Fernandez Vaz
Em março de 2016 escrevíamos neste mesmo espaço sobre a condução coercitiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, determinada pelo Juiz Sérgio Moro. Naquela ocasião deixávamos clara uma preocupação: a atitude parecia exagerada e poderia cumprir um papel ideológico importante contra o ex-presidente e tudo o que e ele representava para a política. Eis que em 12 de julho último nossas impressões parecem ter sido confirmadas. O mesmo Juiz condenou Lula à prisão por mais de 9 anos.
Mais uma vez vamos nos abster de comentar a dimensão técnica da decisão, objeto de disputa até mesmo entre juristas. É difícil para o leigo saber se há culpa ou não no caso que motivou a pena. Tampouco não nos esquecemos do conjunto absurdo de erros que o ex-presidente cometeu, aliando-se com o que há de pior na política e no capitalismo tupiniquim. Inegável que ele ofereceu muita munição para os seus inimigos.
No entanto, dois aspectos comuns às práticas recentes do judiciário brasileiro parecem contribuir para que a gente ordinária se afaste cada vez mais da política. Muita coisa poderia ser dita sobre os arroubos daquele Poder para “moralizar” o país. Mas o seu papel ideológico, hoje, transbordou qualquer figura retórica. Nesse jogo Sérgio Moro é apenas mais uma peça.
O primeiro aspecto se refere ao caráter discricionário da operação que acaba de condenar Lula, em primeira instância. Desde o começo, mesmo que seja negado pela grande imprensa aliada com o poder há muito vigente, Lula foi o alvo claro da Operação Lava Jato. As denúncias contra o PT, a prisão de alguns dos seus líderes, a campanha pela deposição de Dilma Rousseff, tudo ocorria em nome do combate à corrupção, mesmo com tantos colarinhos brancos desfilando pelas ruas do país e pelo plenário do Congresso Nacional. Mesmo com Malufs, Jucás, Aécios, Calheiros, Sarneis, e todo amplo espectro de políticos profissionais sem qualquer compromisso com o que é público. Ora, se reconhecermos que estatais como a Petrobrás e grandes empreiteiras como as envolvidas na Lava Jata há décadas têm uma relação entre si promíscua, estas se alimentando das primeiras desde muito antes do nascimento do PT, então já havia uma operação política em curso ao definir um período “a partir” dos governos do PT para investigar a corrupção.
Muitos têm defendido que ao prender gente como Eduardo Cunha e Delcídio do Amaral a operação se mostrou politicamente neutra. Mas não devemos esquecer que Cunha foi o artífice do impeachment de Dilma Rousseff, mesmo com tantas denúncias, processos e dúvidas contra ele. Além disso, nunca foi um político que representasse os interesses maiores da elite econômica brasileira. Por outro lado, as recentes ações contra políticos do PSDB e do PMDB, assim como de outras tantas agremiações irrelevantes, parecem significar um jogo de cena para que tudo pareça o mais imparcial possível. Vários têm sido presos, mandatos são suspensos, mas em pouco tempo estão novamente soltos e outra vez no Congresso,mesmo quando contra eles existem gravações, malas de dinheiro etc., etc., etc., para além das delações. Ademais, essas ações foram desencadeadas quando o objetivo de destituir Dilma da presidência fora alcançado, e o PT profundamente combalido. Ou seja, tudo de relevante que aconteceu contra outros políticos e siglas na operação Lava Jata, deu-se depois que Dilma, o PT e principalmente Lula, estavam identificados como o que há de pior na política brasileira, começo, meio e fim da pilhagem que sangra o Brasil há séculos. Simbolicamente não é pouco!
Mas há ainda um segundo aspecto nesse conjunto de operações judiciais, como as desferidas por Sérgio Moro. Na terça feira, 13 de julho, foi aprovada em Brasília a reforma trabalhista conduzida por Michel Temer. A CLT foi rasgada, direitos foram simplesmente extintos e o Brasil agora é lançado em formas de gestão das relações entre capital e trabalho combatidas desde o século XIX. Nopaís se alimenta o trabalho escravo, que amplia continuamente o exército de reserva, que sonega direitos à maioria da população; ao mesmo tempo, tem alguns dos bancos mais lucrativos do mundo, uma indústria que se acostumou a assaltar o Estado, desigualdade social e econômica entre as maiores do mundo. É de uma violência atroz o Estado arbitrar tão escancaradamente a favor do capital.
O anúncio da condenação de Lula por Sérgio Moro no dia seguinte àquela votação da reforma trabalhista, parece,para os que não gostam da boa política, uma feliz coincidência. Afinal, o desastre perpetrado contra os trabalhadores brasileiros sumiu da mídia, não se discutiu com o devido cuidado e alcance as manobras que permitiram o resultado da votação, assim como o fim dos direitos foi tratado como um caso comum, cotidiano, normal e sem maiores consequências. A grande mídia deixou em segundo plano a cobertura da reforma para centrar-se na condenação a Lula.
Em dois momentos chave, portanto, no tratamento das acusações contra Luiz Inácio Lula da Silva, o Juiz Moro cumpriu um papel político fundamental para os interesses dos mais poderosos.Das duas, nenhuma: ingênuo ou azarado! Queiram ou não os defensores do magistrado e da Lava Jato, alguns dos seus resultados ajudaram a combater um símbolo do que poderia ser um outro país, não aquele da Casa Grande e da Senzala. Nenhum dos outros políticos atingidos têm a estatura de Lula no que se refere à política brasileira. Aécio não é suportado sequer pelos correligionários, Eduardo Cunha fez carreira explorando a estupidez travestida de religião, Rocha Loures e Geddel representam o que existe de pior no segundo e no terceiro escalões da política. Assim como Temer, que sempre circuloupor bastidores e sobras do poder. Contra políticos importantes, há décadas acossados por toda sorte de denúncias de corrupção, já se viu ação efetiva da justiça brasileira? Algum tipo de condenação e punição?
A condenação de Luiz Inácio Lula da Silva é simbólica sob muitos pontos de vista. Nordestino, operário, pobre, sindicalista, pouco instruído, mas de uma competência e sagacidade política desconcertantes para os donos do poder no Brasil. Além disso, mesmo no mar de lama que se meteu, e para o qual contribuiu de alguma forma, Lula continua sendo a preferência da maior parte dos eleitores brasileiros para as eleições de 2018. Claro que isso não interessa e provoca medo entre aqueles que habitam o andar de cima da sociedade brasileira. Um presidente de fato popular, que saiu do governo com mais de 80% de aprovação, continua liderando as pesquisas para o cargo mesmo depois de tudo que se produziu contra ele, na mídia e no Judiciário. Se há traços claros de que as elites não suportam essa ideia, isso não é apenas por uma questão pessoal, até porque Lula se mostrou bastante à vontade convivendo com a turma de cima da economia. De qualquer forma, seria injusto esquecer que nos últimos 10 ou 15 anos o Brasil avançou em alguns aspectos, econômicos, sociais e até institucionais. Afinal, quando se fortaleceu a Polícia Federal e o Ministério Público? Quando se observou um conjunto de políticas de inclusão social, educacional, econômica etc.? Por mais que os governos de Lula e Dilma tenham frustrado muitos que esperavam avanços mais significativos, principalmente, talvez, nas formas de fazer política, ainda assim foi um período no qual muito se discutiu, falou e fez em termos de diversidade, inclusão, participação etc.
A convivência promíscua do ex-presidente com a escória do empresariado brasileiro e com raposas velhas das carcomidas formas de fazer política, pode ser considerada um grande erro que em muito ajudou a produzir o atual estado de coisas. Mas se fosse este o critério para julgá-lo, então seria necessário implodir toda a atual estrutura política do país, a começar pelo veto à participação de muitos dos atuais políticos em qualquer pleito, uma vez que o sistema está podre e “se gritar pega ladrão” em Brasília… A questão de fundo é que Moro e outros estão fazendo um discurso moralizador e salvacionista, tomando Lula como bode expiatório. Nada mais antipolítico! Nada mais (des)educativo, uma vez que pouco se discute e se preocupa com a apropriação privada da coisa pública, com a impunidade de políticos, magistrados e procuradores que deveriam preservar o interesse comum, nada se faz contra centenas de pessoas com foro privilegiado, imunidade, e outras aberrações claramente casuístas e corporativas.
A sentença de Moro contra Lula deseduca porque parece jogo de mocinho contra bandido, sempre que o primeiro é aquele que se acha superior, guarda da moral, e politicamente neutro, enquanto o bandido, curiosamente, é alguém com muito apelo popular, com uma história pessoal ao arrepio do que prevê a elite e que ousou, minimamente, defender alguns dos interesses da população mais pobre. Deseduca, ainda, porque as únicas vítimas diretas, de peso, da caça às bruxas perpetradas pela mídia, pelo Congresso e pelo Judiciário foram Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva.
Sustentamos, como fizemos há mais de um ano, que Lula deve pagar pelos seus erros, caso eles sejam provados. Mas ele já pagou muito mais do que sustentam Moro e a sua Operação. Pagou simbólica e politicamente, levando de roldão algumas das poucas, mas relevantes políticas de inclusão produzidas em seu governo. Pouco se fala sobre isso e embaralhar a opinião pública é uma das mais eficazes formas de deturpar a memória histórica.
Carlo Ginzburgescreveu sobre a necessidade de os intelectuais não se deixarem contaminar pelas análises conspiratórias da história. Mas não deixou de alertar que a conspiração é um fenômeno histórico como outros, e precisa ser compreendida e descortinada. O acúmulo de “coincidências” que condena uns, protege outros e preserva a maioria com poder e dinheiro não parece uma simples fatalidade ou um acaso da História, mas parte de um jogo sórdido que tem como resultado imediato a despolitização da sociedade, e como vítima privilegiada o povo simples brasileiro. Afinal, Temer, recém preservado pela Câmara de Deputados, seus asseclas e seus chefes ainda prometem fazer muito estrago nas possibilidades de uma vida digna para este povo.
Belo Horizonte, Florianópolis, agosto de 2017.