Criacionismo e ensino religioso (de novo) em discussão
Repercutiu e causou espanto entre cientistas, educadores e livres-pensadores a notícia da apresentação à Câmara Federal, do projeto de lei 8099/2014 do deputado Marco Feliciano (PSC-SP). Neste, o pastor que alcançou fama nacional ao ser nomeado, em que pese sua militância homofóbica, para a Comissão de Direitos Humanos, brinda-nos agora com sua proposta de inserir conteúdos criacionistas na grade curricular das redes pública e privada de ensino. De acordo com esse projeto, o ensino de ciência deveria “incluir noções de que a vida tem sua origem em Deus, como criador supremo de todo universo e de todas as coisas que o compõe”. Prontamente, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) solicitou aos deputados federais o arquivamento da peça, argumentando que o evolucionismo é uma ciência e que, como tal, pode ser testado, refutado ou comprovado, ao contrário do criacionismo, que, como crença, sustenta-se exclusivamente na fé.
É desnecessário repetir os argumentos da carta da SBPC contra a pretensão de que a crença dos cristãos, por mais numerosos que sejam, seja tratada no campo do conhecimento e do ensino de modo equivalente a uma teoria permanentemente testada e corroborada por evidências. A SBPC lembra, além disso, aos legisladores que a LDB já dá suficiente espaço para o ensino de crenças nas disciplinas de religião e que a obrigatoriedade do criacionismo sob a rubrica curricular de ciência violaria a liberdade de crença de alunos não cristãos. Todavia, ao pastor e deputado não parecem ser suficientes o lugar e o estatuto concedidos pela lei maior ao ensino religioso nas escolas públicas, uma vez que juntou sua nova proposição ao PL309/2011, também de sua autoria, que visa a torná-lo obrigatório.
Vale repetir que o Estado brasileiro é laico, assim como o é seu sistema de educação. Ainda assim, a lei concede ao ensino religioso presença facultativa nos horários normais das escolas públicas, desde que não haja constrangimento, proselitismo e desrespeito à diversidade. Sustenta tamanha concessão a questionável premissa de que o ensino religioso seja “parte integrante da formação básica do cidadão”, uma vez que ao menos desde a separação de poderes consagrada pela Revolução Francesa conta-se, para a formação do cidadão, com um corpus jurídico, valores e premissas éticas e políticas cabíveis aos Estados laicos.
Não surpreende, todavia, mais essa concessão, dada a leniência com que, observando antigas concordatas, o Estado brasileiro tem mantido privilégios a grupos religiosos, tais como isenção de impostos e concessões de rádio e televisão, para que em seus templos arrecadem dinheiro prometendo paraísos, propaguem a intolerância a religiões concorrentes e a modos de vida com os quais não concordam e, de quebra, promovam candidaturas políticas de seus afiliados sob as vistas grossas do tribunais. Sumamente preocupante é, ainda, o fato de os sectários aproveitarem-se das brechas e imperfeições do sistema político para se aboletarem em trincheiras suprapartidárias nas casas legislativas e poderem, de quando em quando, oferecer à sociedade projetos que, como esse, ferem o estado de direito e ameaçam conquistas sociais. O ensino de religião em escolas públicas seria uma concessão justificável se de fato fossem observados os preceitos constitucionais de respeito à diversidade cultural e religiosa e de proibição de qualquer proselitismo. Não é, porém, o que acontece na realidade escolar cotidiana, em que professores, não só nas aulas de religião, manifestam às crianças e jovens sua crença na existência de seres sobrenaturais e, do alto do poder institucional que o próprio Estado lhes confere, sustentam a disciplina interna e o aconselhamento moral dos estudantes em valores que nem sempre coadunam com os que o Estado desejaria ministrar a seus cidadãos. O projeto de lei 309, sob a retórica democrática, pretende sustentar no direito constitucional a prerrogativa de difundir nas escolas as convicções de uma igreja que julga como “erro” outras doutrinas religiosas e outros valores e modos de vida, assim como chama de “mentirosa” a ciência que não confirma as escrituras.
Não se pode esperar que na proposta do líder de uma confissão que afirma crer “no juízo vindouro que recompensará os fiéis e condenará os infiéis” e “na vida eterna de gozo e felicidade para os fiéis e de tristeza e tormento para os infiéis” estejam sinceramente contidos o respeito e a tolerância a religiões, valores e modos de vida que não lhe correspondam. Nada poderia contrariar mais frontalmente a humanidade, afinal, do que pregar a desgraça dos que não creem no que você acredita. Galileu Galilei e Giordano Bruno não escaparam. Escaparemos nós?