CL – Nº 66 – 14/11/2014

 Informativo semanal do projeto “Pensar a Educação, Pensar o Brasil – 1822/2022”

Ano II – Edição 066 / sexta-feira, 14 de novembro de 2014 

A força da escravidão (Sidney Chalhoub)

A escravidão e a liberdade na sociedade brasileira, felizmente, tem sido temáticas fartamente exploradas pelos historiadores sociais no Brasil. No livro de Sidney Chalhoub, publicado em 2012, pela Companhia das Letras, intitulado A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista, a escravidão e a liberdade foram analisadas sob o prisma das incertezas, das indeterminações históricas e da precariedade de condições e estatutos numa sociedade em que a força das relações escravistas impregnava, cotidianamente, as experiências individuais e coletivas.

Interrogando uma vasta série de documentos oficiais de polícia e do Ministério da Justiça, livros de entrada na Casa de Detenção da Corte, processos cíveis, relatórios ministeriais, legislação, pareceres do Conselho de Estado, além de anais da Câmara dos Deputados e do Senado e, a produção literária de Machado de Assis, o historiador reconstrói histórias bem sucedidas de contrabando, sob “grossas vistas” dos agentes do Estado (com destaque para a administração saquarema do gabinete Eusébio de Queiroz). Na elaboração dos seus argumentos, Chalhoub enumera histórias de práticas de suborno das autoridades competentes pelos traficantes e de tentativas de revogação da lei de abolição do tráfico de 1831 por projetos parlamentares. Acompanha casos de africanos livres recém contrabandeados, que eram forçados por senhores e traficantes a aprender, minimamente, a comunicação em língua portuguesa, para se passarem por ladinos e, portanto, considerados como ingressos antes da lei de 1831. Persegue as situações de aprisionamento e escravização de africanos livres e de reescravização de pardos e pretos pela polícia da Corte, sob o argumento ardiloso da “presunção da escravidão”, já que a contraprova da liberdade era ônus que recaía, via de regra, sob o sujeito aprisionado. Entre outros casos, as histórias reconstruídas pela leitura e cruzamento de fontes variadas, permitem ao historiador a sustentação da sua tese central a respeito da precariedade da liberdade e da força da escravidão no Oitocentos.

Apenas para detalhar um exemplo dessa operação historiográfica, no primeiro capítulo, “O grande medo de 1852”, Chalhoub acompanha várias revoltas ocorridas no Norte do Império do Brasil, nas quais a população revoltosa reagiu às tentativas de implementação da lei de registro civil obrigatório, entre outras razões, pelo temor latente de que o cadastramento de pessoas servisse às estratégias senhoriais de escravização dos pretos e pardos livres, num contexto de intensa repressão ao tráfico atlântico de escravos, após a lei de 1831, e principalmente, após a lei de 1850. Da conexão entre os dois processos, – o da ambiguidade da condição jurídica da população negra e o da burla permanente às leis de extinção do tráfico – o autor defende a hipótese de que a experiência da escravidão no Brasil, pela sua força, tornou precária a liberdade de negros livres e pobres no Brasil, produzindo, inclusive, silenciamentos sociais e políticos quanto a esta situação histórica. Os silenciamentos foram observados, por exemplo, pela hábil engenharia de autoridades públicas e da classe senhorial que, no próprio fazer-se de si e do Estado imperial, ocultaram, por décadas, a entrada contínua, via tráfico ilícito, de africanos para sustentação da economia escravista. A partir de fontes variadas, o autor observa que as décadas de 1860 e 1870 foram cruciais no aumento da busca dos africanos livres e dos escravos ao Poder Judiciário, movendo ações de liberdade, muitas delas com alegações que se baseavam no conhecimento da legislação específica a respeito da ilegalidade da escravidão após as leis que visavam extinguir o comércio transatlântico no Brasil. Após a chamada Lei do Ventre Livre, de 1871, que impunha aos senhores a matrícula dos escravos e determinava a liberdade dos “ingênuos”, e também com as lutas dos abolicionismos dos anos de 1870 e 1880, o pressuposto da liberdade, aos poucos, vigoraria, ainda que de modo incerto e indeterminado, sob a força da escravidão.

No ensaio de História Social, como não poderia deixar de ser na obra do historiador, está presente a preocupação com o que os escravos e pessoas livres, pardas e pretas, poderiam saber a respeito do arcabouço legal que garantia o fim do tráfico e determinava a liberdade dos africanos contrabandeados após a lei de 1831. Encontra em depoimentos de africanos livres e escravos na polícia, em processos cíveis de liberdade, nos pareceres do Conselho de Estado, entre outras fontes, a presença do argumento legal como motivo de defesa da liberdade pelos sujeitos que experimentaram, em situações concretas, as dolorosas incertezas sob sua condição.

Ainda para refletir sobre as possibilidades de informação sobre leis e direitos pela população, o autor mobiliza dados censitários, especialmente produzidos nas décadas de 1850 e no Recenseamento de 1872, concluindo, em frágil argumentação, que, seriam escassos os meios de conhecimento das normas jurídicas, tendo em vista o elevadíssimo número de analfabetos, que chegava a 80% população no Império (dados de 1872). Limitando-se, porém, à frágil estatística oficial e não distinguindo conceitualmente história da alfabetização e práticas sócioculturais de letramento, Chalhoub não dialoga com as pesquisas mais recentes do campo da História da Educação. Historiadores que se dedicam à história da alfabetização, ao estudo das práticas culturais de leitura e escrita, à história da escola, entre outras temáticas, tem analisado, fartamente, as relações complexas e dialéticas entre oralidade e escrita nas sociedades contemporâneas, inclusive a brasileira. Demonstram o quanto é simplista, e problemática, a associação direta entre alfabetização e letramento, e, mais ainda, entre estatísticas de alfabetização e processos de escolarização. Além disso, pesquisadores brasileiros, preocupados com o acesso à instrução formal, apontam para a presença significativa de parcelas da população pobre, negra e mestiça, nas escolas oitocentistas, fato já conhecido nas principais províncias e cidades imperiais brasileiras (Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco, Bahia, Maranhão, Mato Grosso, entre outras). O conjunto de pesquisas em História da Educação, sem dúvida, traz um repertório inovador de questões aos historiadores sociais e culturais, embora não tenha sido mobilizado pelo historiador na obra referida. Prevalece, ainda, infelizmente, certo distanciamento, falta de diálogo e rigidez entre os campos disciplinares, o que causa, a meu ver, prejuízo às análises em ambos os casos.

O livro A força da escravidão, nos seus dez capítulos, é obra de leitura agradável e fluida, baseada em pesquisa farta e cuidadosa, fundamental para refletirmos sobre a ambiguidade das experiências de escravidão e de liberdade na sociedade brasileira. A força de sua argumentação reside justamente na construção histórica das práticas de dominação de classe, de discriminação, de racismo, e do silenciamento sobre as mesmas, no passado e também no presente. Para nós, historiadores da educação, a leitura desta obra de Sidney Chalhoub nos ajuda a redimensionar, e a potencializar com novas perguntas, as nossas investigações. Há algumas décadas temos pautado como uma de nossas questões centrais o estudo das lutas pelo acesso à escola e dos significados da educação pública para as populações pobres e negras brasileiras, como caminhos possíveis, em vários contextos históricos, para dirimirem a “força da escravidão” e do racismo, e afastarem a precariedade da liberdade e da cidadania.

A pauta educacional, como sabemos, está plenamente aberta, viva, presente e urgente. Atravessa e constitui nossa experiência histórica e nossas culturas políticas. Afinal, a “força da escravidão” ainda pode ser sentida em nossas vidas cotidianas, nas salas de aula, e fora delas, na sociedade desigual e racista, cuja cidadania é constantemente ameaçada, como pudemos, aliás, observar recentemente, por ocasião das últimas eleições, nos tristes episódios de racismo, ódio de classe, xenofobia e ataques aos direitos políticos e sociais conquistados no pós-1988. 

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