Bernardo Jefferson de Oliveira*
Nesses tempos de pandemia muitas pessoas têm lembrado do romance A peste, que Albert Camus escreveu em 1947, no qual descrevia a cidade de Orã, onde ele crescera, sendo sitiada por acontecimentos devastadores. A história começa com os moradores distraídos em seus cotidianos, cada um com seus afazeres, quando sinais sinistros vão aparecendo. Primeiro, ratos mortos. Depois pessoas começam a morrer e a epidemia toma conta da cidade, espalhando vírus e pânico em todas as ruas. Situações como a que temos visto nos noticiários: pilhas de mortos, sem ter como enterrá-los dignamente. A imposição de isolamento, a necessidade de mudança de hábitos, assim como as formas de se interpretar o flagelo, são narradas de um jeito que fizeram do livro ser considerado como um dos melhores romances europeus do período pós-guerra, e valeu a Camus o prêmio nobel de literatura daquele ano. Em 1990, virou filme, mas sem muito sucesso.
A atmosfera do romance, sufocante e opressiva, foi lida na época como uma metáfora da guerra e da ocupação nazista que havia findado poucos anos antes. A ficção não tinha qualquer pretensão de reconstrução histórica, mas o flagelo da peste mantém ambiguidades e se presta plenamente à representação de uma guerra, envolvendo a todos de tal forma que não se vê fugas nem saídas individuais. E implica em questões desafiadoras: Como suportar a desgraça? Como enfrentá-la? Para alguns, religiosos, tratava-se de rezar. Algumas pessoas procuram ficar indiferentes e há até oportunistas que se aproveitam das carências e do desespero para lucrar de alguma forma. Mas muitos buscam agir como podem para diminuir o sofrimento geral.
De acordo com historiadores das epidemias, há uma certa dramaturgia recorrente na forma com a sociedade percebe e reage às pragas. Primeiro uma negação, “isso não vai evoluir”. Em um segundo momento, quando o avanço da epidemia é inegável, começam a buscar os culpados -“Quem são os portadores?” – como se ela fosse sempre algo estrangeiro. O terceiro momento é aquele em que é preciso se organizar para fazer frente à doença, em que se vê a solidariedade e a sociedade atuando.” Aquí vemos as redes de apoio, associações e combatentes voluntários, em diversas frentes, ajudando a população mais vunerável a enfrentar as mazelas.
O sentimento de solidariedade é aguçado na situação trágica, pois alí a condição humana é desnudada. A fragilidade de nossos planos, a fugacidade da vida, as incertezas de nosso conhecimento são constatações que não deveriam precisar de tragédias nem da proximidade da morte. Mas estas nos fazem repensar nossas vidas.
Camus rodeava e se debruçava sobre os mesmos temas em romances, peças e ensaios. Assim, “Calígula”, “O estrangeiro”, e o ensaio filosófico “O Mito do Sísifo” compõem um ciclo em de suas reflexões sobre o absurdo da existência humana. No pós-guerra, outro ciclo é criado em torno da revolta contra o absurdo, do qual fazem parte seus romances “A peste” e “A queda”, as peças “ O estado de sítio” e “Os justos”, e o ensaio “O homem revoltado”. Neste ensaio, Camus desenvolve reflexões sobre as origens, características e limites da revolta, lançando luz sobre seus romances e peças. Não que suas peças e romances fossem ilustrações de suas teorias. Longe disto, eles têm vida própria e vão muito além. As narrativas ficcionais enriquecem com formas, imagens e sentimentos, as formulações teóricas dos ensaios. Mas seus ensaios são também criativos e instigantes e nos ajudam a refletir sobre conceitos e pensamentos¹.
Num paralelo com o “Penso, logo existo” com que Descartes fundamentava o conhecimento no Eu pensante, deslocado da exterioridade incerta do mundo, Camus toma a revolta como uma dimensão fundante do social, expressão da existência solidária: “Revolto-me, logo existimos”. Para Camus, a solidariedade é o sentimento experimentado quando a revolta evidencia limites que são comuns a todos. É a experiência coletiva do absurdo e, portanto, a vivência comum de seu enfrentamento.
A revolta, na forma que Camus a concebe, mantém a formidável conjunção de uma sempre renovada e aguerrida indignação com o reconhecimento dos limites da condição humana.
Alguns críticos da obra de Camus viram ali uma valorização ingênua de um humanismo distante das disputas políticas (acirradas na guerra fria e nos movimentos anticolonialistas que sucederam ao fim da 2ª guerra mundial), como se houvesse uma unidade humana que poderia ser recobrada na luta contra o mal inumano que nos ameaça.
No entanto, para Camus, o que subleva o revoltado não é um mal externo ao homem: é o absurdo da vida. “O bacilo está em todos. O que é natural é o micróbio.” Em hipótese alguma a luta contra flagelo serviria para encobrir injustiças menores, justificando sacrifícios até que a grande ameaça fosse superada. Este é precisamente o desafio do revoltado: não se conformar nem desesperar. “Essa coisa toda não tem a ver com heroísmo” diz o personagem central do romance, Dr. Rieux. E quando a peste foi desaparecendo, mais de um ano depois, e a normalidade estava por ser retomada, ele adverte: esta vitória era passageira. “todo mundo tem a praga dentro de si, ninguém é imune”.
A peste chama a atenção porque ali nossa condição absurda é evidenciada, com a morte pairando intermitentemente sobre todos. Se os males estão aí exacerbados, eles são os mesmos que existem, difusos, no nosso mundo de todos os dias – injustiças, privações, morte – mas que costumam a ser esquecidos ou sublimados.
As dificuldades desse combate infindável transparecem em seus diversos matizes naqueles personagens sitiados pela peste em Orã. Situação que, pela sua própria duração e monotonia, quase todos acabam, pateticamente, por se habituar. Adaptando-se à ordenação da peste e desencarnando-se aos poucos de seus próprios sentimentos. Criamos novas rotinas, como o acompanhamento dos balanços burocrático do número de mortos, de quem quase nada se sabe. Quando as injustiças e mortes não são testemunhadas, enquanto não atingem nossos próximos, tendemos a menosprezar sua ameaça constante. Camus nos faz ver que estamos não apenas condenados a uma condição absurda e limitada, mas também condenados a esquecer tal condenação. Além de submergirmos no automatismo do cotidiano, as abstrações do progresso, da salvação, do mercado, do futuro redentor servem de obstáculo para a vivência do presente. Anestesiam nossas dores existenciais e nos deixam entretidos com coisas tolas.
A questão do papel e alcance da solidariedade volta à tona neste momento em que estamos sendo convocados para ações urgentes de produção e doação de materiais de proteção, na criação e ampliação de redes de apoio financeiro, psicológico e cultural. Seria a solidariedade uma atitude assistencialista ou ingênua, já que nada altera das estruturas sociais que mantêm as desigualdades e favorecem injustiças?
Não estaria ela restrita a um sentimento de fraternidade efémero, que encobre diferentes interesses de classe e alimenta patriotismos? Algo que adia a luta contra a problemas estruturais e procura substituir o papel do Estado pela filantropia? Um movimento que sequer procura, como no âmbito da cidadania, atuar politicamente na promoção direitos comuns a todos? Ou, diferentemente, seria o caso de enfatizar na solidariedade sua dimensão política, que se empenha na premência de atenção e ação junto aos mais vulneráveis e na urgência da luta pelo reconhecimento de seus direitos?
O termo solidariedade vem do latim solidus, do qual foram derivados verbos como consolidar (tornar sólida uma coisa), adjetivos como solidário (“vínculo a uma posição/ação ou adesão a uma causa), e objetos cujo movimento depende reciprocamente de outro (como as peças de uma engrenagem). Também os termos soldado e soldo advém da mesma origem etimológica.
As formas de interligação social são diversas e uma boa análise histórica e sociológica é feita por Richard Sennett em seu livro “Juntos” (2012), no qual analisa a cooperação – o trabalho com os outros para fazer algo que não se consegue fazer por si próprio- como uma habilidade fundamental e complexa: algo que requer dos indivíduos a capacidade de compreensão mútua. Ele nos mostra o processo de cooperação como algo espinhoso, cheio de dificuldades e ambiguidades, que nem sempre traz efeitos positivos, e que vai se transformando com o surgimento de novos instrumentos e tecnologias. Em um dos capítulos iniciais, ele desenvolve um contaponto entre cooperação política e cooperação como prática social que nos ajuda a situar a solidariedade. As duas formas são obviamente políticas, mas a que ele especifica como tal é a que se manifesta em coalizões partidárias ou sindicais, na qual se procura superar dissensos a partir um projeto consistente, desenvolvido em torno de uma ideologia, de estratégias e formas de representações mais claras. Já a cooperação como prática social, que identificamos como ações de solidariedade, seria mais espontânea, com maior abertura e diversidade, e com isso maior criatividade e capilaridade. Menos unificável e menos perene, o comprometimento é informal e mais individual.
Camus explora sobretudo a baliza da dimensão individual, que não pode ser subsumida na ação coletiva. Para ele a solidariedade permite que as responsabilidades sejam assumidas individualmente, e torna desnecessário o recurso a um sentido superior que pudesse justificar as condutas. É a descoberta de que a existência de cada um, ou o sentido que a ela se quer dar, está relacionada com a existência dos outros e com o sentido que eles lhe dão. A descoberta de que minha relação com os outros depende do sentido que forjo e como vivo minha existência. Sem desesperar nem alimentar falsas esperanças, trata-se de encontrar sentido no enfrentamento dos absurdos e alguma felicidade nesta combate. Em seu livro de contos “O exílio e o reino”, Camus nos traz diversas tonalidades da relação com o outro, retratando o difícil equilíbrio entre o solitário e o solidário. As diferentes personagens dos contos vivenciam a solidão mesmo quando procuram a solidariedade. Tanto a comunhão e quanto a felicidade possível, passam pela vivência do isolamento/exílio/singularidade. As ações de solidariedade que ligam pessoas nascem da indignação e da revolta, que afirma o amor à vida com o enfrentamento dos males, sem abstrações que nos desviam da vida presente e nos embalam com falsas esperanças.
*Professor titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais.
¹Quem quiser conhecer um pouco mais sobre isso, veja “A revolta em Albert Camus”
Imagem de destaque: Editora Record/Reprodução