A experiência antidemocrática brasileira e a percepção dos alunos do 9º ano do Ensino Fundamental

Raquel Barreto Nascimento*

O dia 31 de março de 1964 deixou marcas profundas na história do nosso país. De um lado, as forças de esquerda tentavam emergir a partir da luta por participação efetiva nas esferas da vida pública política, o que se efetuaria a partir das reformas populares propostas pelo governo de João Goulart. Do outro lado do jogo político, tramava-se um golpe entre os militares e setores da sociedade civil a fim de usurpar o poder e exercer a total liderança política e administrativa do Brasil. Neste cenário, as forças de esquerda não conseguem se articular rapidamente e acabam sofrendo a maior derrota política já vista em solo brasileiro: dava-se início ao Regime Civil Militar que perduraria por longos 21 anos.

Durante esse período, a censura, a tortura, a perseguição dos opositores políticos e a falta de participação popular nas esferas da vida política foram elementos cruciais usados como tática de dominação e repressão. Apesar dos extensos debates historiográficos acerca deste período e as marcas que ele deixara nas gerações passadas, sobretudo para aqueles que protagonizaram o movimento pela Anistia Política e pelas “Diretas Já!”, a geração atual sente dificuldades em compreender e refletir sobre o que se constituiu este momento e os desafios impostos à nossa recente e incipiente democracia, uma vez que não se reconhecem nesse processo e pelo fato de haver a consolidação de uma cultura do esquecimento dos eventos traumáticos.

Percebi isso em primeira mão quando adentrei no universo escolar através do Estágio Supervisionado, cuja minha responsabilidade fora a de ministrar as aulas de história para a turma do 9º ano do Ensino Fundamental no segundo semestre de 2019. Enquanto conteúdo estabelecido pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), durante a unidade deveriam ser trabalhados os conteúdos relacionados aos acontecimentos políticos e sociais do Regime Civil Militar no Brasil, datado entre os anos de 1964 e 1985.

O livro didático evidenciava que durante 21 anos os cidadãos brasileiros não tinham o direito cívico de escolher os seus representantes políticos, ou seja, não existiam as eleições diretas. Quando questionamos aos estudantes os motivos desta falta de participação democrática, eles não souberam nos responder, revelando o total desconhecimento acerca deste importante período histórico para a formação da sociedade brasileira.

A partir desta constatação, nossa atividade docente se voltou para a realização de aulas que contemplassem os aspectos da vida política do país durante o Regime Civil Militar, evidenciando os aspectos econômicos, sociais e a importância da luta pela democracia que se firmava no período. Tal processo foi facilitado por nosso contato prévio com a temática, uma vez que me insiro em um projeto de Iniciação Científica que tem por finalidade investigar as instâncias formativas de diferentes mulheres do século XIX e XX. O referido projeto de investigação interinstitucional tem por título “A educação de Mulheres ao longo do século XIX e XX”, compreendendo, neste recorte temporal a vida de uma professora primária interiorana que fora perseguida e presa durante o Regime Civil Militar, a poetisa nordestina Maria Celeste Vidal.

Desta feita, derivado do referido projeto interinstitucional, no projeto individual de Iniciação Científica que tem por título “Professora Maria Celeste Vidal: formação e militância de uma presa política”, investigo a trajetória formativa perpassada por esta personagem, que por suas questões ideológicas foi presa, torturada, e vilipendiada em seus direitos de mulher, mãe e cidadã entre 1964 e 1969, a fim de compreender as dificuldades de ser mulher e militante durante o regime político civil militar.

Maria Celeste Vidal foi uma professora primária que atuou profissionalmente em municípios interioranos de Pernambuco, sobretudo na cidade de Vitória de Santo Antão, onde também atuou politicamente exercendo liderança das Ligas Camponesas. Ela se destacou por lutar por melhores condições de vida e trabalho para os camponeses ao passo em que exercia a docência, atuando na reeducação de menores delinquentes e na alfabetização. A professora também fora uma notória poetisa, escrevendo, dentre muitos temas, sobre sua infância, seus filhos, seus alunos, sobre o tempo em que ficou detida e sobre as aflições que suportou durante sua prisão.      Em suma, uma pessoa comum, que com seus feitos modificou a realidade em que se inseria e que a partir de sua trajetória podemos compreender o período estudado.

A partir da ótica de Edward P. Thompson¹, precursor da “History from bellow”, que defende a construção da narrativa da vida e feitos das pessoas simples, fomos de encontro, em nossas aulas, às narrativas de quem compreende esse momento histórico a partir de uma concepção puramente política – distanciando-se do social – onde só os chefes de Estado maquinam as decisões e o povo, emudecido, serve como massa de manobra e é guiado como gado ao matadouro.

Nesta perspectiva, buscamos evidenciar que diferentes personagens em diferentes situações se revelaram como protagonistas de importantes movimentos, o que naquele período se refletia na luta pela retomada da democracia, seja pela resistência física ou por meio da arte como forma de reivindicação. A partir deste movimento, os alunos puderam se perceber como personagens históricos que, dentro de um determinado contexto, contribuem para a formação nacional.

Assim, o processo de despertar a consciência histórica nos estudantes se revelou como fundamental para minha formação docente e de pesquisa. Isto porque, um dos objetivos da produção científica acadêmica é que esta tenha alcance que vá além dos muros da universidade e influa nas pessoas comuns sobre as quais escrevemos. No que concerne à formação escolar dos alunos, tal ação também fora importante, pois se revelou como divisor de águas para que eles ora entendessem o conteúdo e ora refletissem sobre a importância do exercício da cidadania e das instâncias democráticas, compreendendo a si mesmos como sujeitos neste processo.

Por fim, a construção de uma história plural e repleta de versões tem por objetivo contemplar os sujeitos comuns que se revelam como extraordinários, como defende o historiador Eric Hobsbawm², e, ainda, evidencia o caráter coletivo de todos os acontecimentos históricos e esta deve ser a nossa bandeira na sala de aula e nos espaços de pesquisa.


*Estudante do curso de Licenciatura em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa Interdisciplinar em Formação Humana, Representações e Identidades (GEPIFHRI) e pesquisadora bolsista de Iniciação Científica de projeto financiado pelo CNPq que tem por título “Professora Maria Celeste Vidal: formação e militância de uma presa política” orientado pela Prof. Dra. Raylane A. D. Navarro Barreto

¹ BERTUCCI, Liane M.; FILHO, Luciano M. de F.; OLIVEIRA, Marcus A. T. Edward P. Thompson: História e formação. Editora UFMG: Belo Horizonte, 2010.

² HOBSBAWM, Eric. Pessoas extraordinárias: resistência, rebelião e jazz. São Paulo: Paz e Terra, 2009.

Imagem de destaque: Pedro Ribas/ ANPr

 

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