Abrir as telas dos aparelhos de celular, computador, tablet para a aula começar pode ser uma experiência vivida por várias crianças há um bom tempo, provavelmente, desde o início da Pandemia provocada pela Covid-19, quando as aulas presenciais foram suspensas em Minas Gerais e algumas escolas da rede privada puderam se organizar para oferecer a continuidade dos estudos de modo remoto, com o auxílio das tecnologias digitais. Para outras tantas crianças, essa possibilidade sequer existiu e os vínculos com as escolas mantiveram-se distantes e frágeis.
Para as crianças do segundo ano do ensino fundamental de uma escola estadual da região do Barreiro, em Belo Horizonte, foi neste ano que os encontros com as professoras e professores por meio das telas digitais, especialmente o celular, passaram a fazer parte de suas rotinas diárias. Foi em um desses encontros/aulas online que recolhemos as informações tecidas aqui em palavras.
As crianças chegam cedo, antes mesmo do horário marcado pela professora, abrem suas câmeras sem reserva alguma, como se estivessem bastante acostumadas, e começam uma conversa animada entre elas, de telinha para telinha, como nos conta Raquel (aluna da Faculdade de Educação da UEMG). É um momento de grande empolgação, muitas falam ao mesmo tempo. Percebe-se, nesse momento, como as emoções expressam a importância das trocas socioafetivas entre as crianças. Estar juntas, entre os pares, amplifica a ação social. Entre elas, falar, brincar, mover-se, expressar-se, são ações mais exigentes, pois envolve a construção de relações, de negociações, de regras e até de certos tipos de retórica intragrupos. Na chance de estabelecer um ambiente interativo e de reciprocidade, a professora promove, antes de iniciar a aula, uma conversa descontraída com as crianças e o que se percebe é uma atmosfera de grande entusiasmo que invade os ambientes das casas.
Assim, a sala de aula ganha as intimidades das casas das crianças. As telas quebram a fixidez dos espaços escolares, pois é possível assistir aula de qualquer lugar da casa ou até fora dela, parado ou em movimento. O quadro fixo e os murais viram telas. O caderno não é mais o único suporte para a escrita e a ordem do alfabeto se desalinha nos teclados. A cama, a mesa da cozinha ou do cantinho da sala são agora as mesas de apoio para os fazeres escolares. Esses múltiplos e coloridos cenários compõem agora a escola.
Há uma solenidade, tanto construída pelas crianças como pelos demais habitantes da casa, quando a casa se transforma em escola. Essa solenidade diz do valor atribuído pelas famílias aos espaços/tempos dedicados aos estudos. Para que as crianças não se distraiam com os movimentos corriqueiros da casa, os adultos e as demais crianças, mesmo bem pequenas, circulam com passos leves e rápidos, quase imperceptíveis à criança que está diante da tela assistindo à aula. A solenidade está no modo de vestir de algumas crianças, de se pentear e de se colocar diante da câmera, está também no ambiente cuidadosamente preparado para tornar-se parte da sala de aula. E mesmo que os cabelos não estejam penteados ou que a roupa ainda seja a de dormir, a pontualidade e a atenção à fala da professora diz-nos do compromisso das crianças com o momento da aula. A casaescola é agora um modo de aproximação irredutível da escola com as famílias, um elo fortalecido de comutabilidade que não se pode mais desfazer.
Na casaescola, a aula é sobre pontuação: vírgula, ponto de exclamação, ponto de interrogação e ponto final. Concentradas, muitas vezes, na ortografia, as crianças demoram a dar atenção a esses sinais do nosso sistema de escrita e, muitas vezes, os relacionam às pausas na leitura. É nesse espaço/tempo, de tarefas mediadas, que compreendem que os sinais de pontuação são registros gráficos que servem para articular os textos e indicar os sentidos ao leitor.
Das 28 crianças matriculadas na turma, 18 participaram da aula. Por um lado, isso pode ser visto como uma boa frequência, pois, considerando as circunstâncias, tem-se ali a presença da maioria. Tal presença, no entanto, denuncia a ausência das dez crianças que não apareceram. Onde estarão? O que essas ausências poderão significar em seus processos escolares? Que outras possibilidades podem ser construídas com essas crianças para que não sejam excluídas de suas próprias escolarizações? Tais ausências denunciam decerto o acirramento da crise social atual que se alonga e aprofunda as desigualdades escolares.
Raquel Tereza de Faria Campos Zarahi contribuiu para a realização deste texto com o relato oral produzido a partir da sua observação junto à turma, durante uma aula online.
Para saber mais:
SILVA, Cinara Santana da; BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi. Reflexões sobre o ensino e a aprendizagem da pontuação. In: MORAIS, Artur Gomes de. O aprendizado da ortografia. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
Imagem de destaque: Garcia.arnel / Wikimedia Commons