Relações de gênero na infância: uma experiência na escola democrática.

Divimary Borges1

Sempre percebi as desigualdades sociais de gênero, mas foi no início do mestrado que realmente me aprofundei no tema. Aprendi que as masculinidades e as feminilidades são relacionais e essas construções sociais (SCOTT, 1995) que podem ser (e são) modificadas durante o tempo. 

A ideia foi de investigar uma instituição diferente, talvez progressista. Progressista e particular, já que ambos os campos haviam despertado em menor proporção o interesse da academia. A pergunta que regia meu olhar empírico sobre as crianças que investiguei era: Como as crianças constroem suas relações de gênero inseridas em uma pedagogia que, pelo menos a priori, imaginamos libertária? Um espaço em que a livre iniciativa é proporcionada como princípio pedagógico poderia ajudar na investigação da socialização das crianças que, de forma autônoma, também produzem (além de reproduzirem) seus posicionamentos de meninos e meninas. Sabemos que as características femininas e masculinas estão dispostas simbolicamente de maneira binária ainda nos dias de hoje, e que as crianças já percorreram um caminho social até chegarem à escola, porém, se o gênero é construído através das relações, as crianças têm capacidade de criarem seus modos de serem meninas e meninos se engajando nesse processo através de resistências e dificuldades nas interações, como diz Connell (2009). 

Aguardei a aceitação da minha presença pelas crianças, conforme a construção de familiaridade e cumplicidade, para uma aproximação, baseada nas experiências etnográficas de Corsário (2009) e nos estudos da Sociologia da Infância (MARCH, 2011). 

Minhas observações e as anotações pretendiam investigar: mecanismos de aproximações e distanciamentos, quando o gênero interfere nas escolhas, quais são os agrupamentos e em que ambientes escolares se delimitam ou não, dentre outros. 

Participei de quase todas as reuniões que acontecem semanalmente na escola, chamada de Assembleia. Nesta ocasião, tanto professores e professoras, como as crianças, colaboram para que haja benefícios na convivência coletiva. Qual não foi meu espanto quando percebi que na organização da roda, meninas se sentaram de um lado e os meninos de outro? A disposição espacial foi representada através da oposição homóloga entre masculino e feminino. Com o passar do tempo, percebi que essa oposição atribuía algumas representações como forte/frágil, assim como as posições hierárquicas que estavam representadas pelas crianças nas brincadeiras. Em uma delas com uso de fantasias, o menino se intitulava “prefeito”, enquanto as outras três meninas que brincavam junto eram de “madame”, “fada” e “empregada”. Os meninos também eram relutantes em participar das atividades colaborativas de limpeza ou organização, associadas ao gênero feminino. Além disso, eles se apropriaram do espaço “dos computadores”, que ficava em uma sala no andar superior, enquanto as meninas se dividiam em alguns grupos transitórios e espalhavam-se pela escola. 

Houve a percepção da manutenção constante da constituição das identidades masculinas, manifestada através da desvalorização do universo feminino. A resistência dos meninos contra a permeabilidade de posicionamentos de gênero tratava de reforçar um contínuo trabalho de “fronteiras das relações de gênero” (CORSARO, 2011, p. 182) entre os grupos. 

A escola ainda possui uma visão normatizante, colocando o androcentrismo como neutro sem abrir espaços de debates para deslegitimá-lo. Se considerei que uma escola com princípios democráticos, com horizontalidade das hierarquias do saber e das relações, poderia levar a caminhos mais questionadores, isto não ocorreu. Contudo, os educadores e as educadoras ficaram interessados nos resultados, me ajudaram a realizar dinâmicas para investigar as reflexões das crianças sobre os comportamentos de meninos e meninas. Em uma delas, uma das meninas fez uma fala surpreendente: “pensando bem, é mais fácil menina brincar com brinquedo de menino ou usar roupas pretas, azuis, do que menino gostar de rosa”, demonstrando sua compreensão dos posicionamentos de gênero naquele ambiente. 

Ressalto a flexibilidade das feminilidades entre as meninas, ressignificando múltiplas formas de ser menina para além de valores simbólicos femininos, como a extroversão e a ocupação dos lugares de forma ampla. Talvez, os movimentos feministas tenham propiciado uma abertura de fronteiras que hoje estão fazendo parte do quadro de novas dinâmicas de ação de meninas e mulheres. Não nos espantamos, por exemplo, com mulheres jogando futebol, mas não consideramos com a mesma naturalidade o fato de meninos brincarem com bonecas ou dançarem balé. Por isso, o controle rígido por parte dos meninos na escola pesquisada na manutenção das suas masculinidades talvez seja um reflexo da pouca flexibilização da masculinidade também na sociedade. Sendo assim, resta à educação e à escola, apesar de ser um espaço de manutenção mas também servir como um lugar de transformações, oferecer um ambiente favorável às desconstruções de padrões engessados que não nos servem mais, enquanto sociedade. 

É necessário se dar atenção para as construções de masculinidades que estão se formando no interior das escolas. A invisibilidade das mulheres na presença de livros didáticos, literários, dentre outros materiais utilizados pela escola, colaboram para a manutenção da desigualdade de gênero.  Isto pode (e deve) ser desconstruído pelos(as) profissionais da Educação. Conhecer a história de mulheres que exerceram importantes papéis sociais como Dandara, Bertha Lutz, assim como Malala, podem contribuir para uma visão múltipla das feminilidades, com representações de mulheres importantes quanto os homens que estudamos reiteradamente durante o percurso escolar. 

 

1Graduada em Pedagogia pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e mestre em Educação nesta mesma instituição com financiamento CAPES, lecionando atualmente na Educação Básica e em Universidade EaD. Trabalha com projetos interdisciplinares na escola que valorizem o respeito à diversidade.


Imagem de destaque: STJ

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