Quando morre a professora 

Edilson da Silva Cruz

A professora Angelita foi a primeira educadora por quem senti verdadeiro afeto. Jovem de 24 anos, recém-formada, fui seu aluno na primeira e segunda séries, entre os 6 e 8 anos, idade crucial da nossa trajetória escolar. Meiga e afetuosa, Angelita traduzia certo número se sentimentos maternos que nos aproximava. Chamava a mim e a meu irmão gêmeo de “meus meninos”. Nos defendia dos mais velhos, elogiava quando aprendíamos, chamava a atenção quando a gente “desobedecia”.

Só aceitei fazer a catequese obrigatória em nossa família católica quando soube, um ano depois de deixar de ser seu aluno na escola, que ela era uma das catequistas na paróquia perto de casa. Pedi para minha mãe que fosse até a igreja e conseguisse uma vaga para meu irmão e para mim no grupo de catequese dela. E assim foi. No primeiro dia de encontro, chegamos mais cedo e nos sentamos, no círculo organizado na sala. Ao entrar, ela nos mirou surpresa e exclamou: “Meus meninos!” Iniciava-se ali a minha trajetória em um espaço de fé que tanto me humanizou, nas pegadas de Jesus de Nazaré.

Gestos de afeto não se apagam jamais. Penso no quanto os gestos da professora Angelita foram importantes para que eu me engajasse, seja no processo de ensino aprendizagem na escola, seja na educação da fé na catequese. Aliás, minha identidade católica é algo muito importante em minha vivência social. Dizer isso, hoje, pode soar conservador e tradicional, mas o catolicismo que aprendi naquela paróquia, com a professora Angelita, foi o das comunidades de base, aliado aos movimentos sociais e às lutas de resistência do Brasil. Foi na Igreja que aprendi a “ser de esquerda”, ao modo freireano, e isso me faz muito grato a ela, mediadora de minha consciência de mundo.

Faz duas semanas que ela faleceu. Jovem, pouco mais de cinquenta anos, depois de um mal súbito. Atuava como diretora de escola aqui na zona leste de São Paulo. Escrevo esse texto ainda sob o impacto da notícia, recordando a última vez que a encontrei. Foi em 2021, no banco. Eu também era diretor de escola, assim como ela, ambos tratando de burocracias das verbas escolares. Trocamos poucas palavras, ainda distanciados por causa da COVID, depois nos despedimos. Não tive oportunidade de dizer para ela o quanto ela impactou a minha vida: minha trajetória escolar, terminada sem percalços, continuada na universidade, até o doutorado em educação; minha trajetória religiosa, política, ideológica, cujas raízes eu encontro no seu afeto tão progressista, capaz de fomentar em um aluno de periferia o gosto pelos estudos e pelo conhecimento, a curiosidade diante do mundo, a fé no ser humano.

O que acontece quando a professora morre? Como dimensionar esse acontecimento cósmico na teia de nossas relações? Quando a professora morre, vai com ela um pouco de nós, aquele pouco que deixamos com ela, enquanto ela nos ensinava. Se a vida é um mistério sem fim, para algum lugar iluminado ela nos leva consigo. Quando a professora morre, um pedaço dela desabrocha dentro da gente, faz-nos conscientes do emaranhado de vida que nos rodeia, da incapacidade de sermos nós sem a presença do outro. Quando a professora morre, já não pode morrer mais, pois sua Páscoa, passagem, é definitiva. Assim, torna-se eterna.

Curioso notar que, para mim, ela sempre foi e será a professora Angelita. Para além de professora, porém, foi a Angelita. Exerceu outros papéis em sua vida: filha, tia, catequista, amiga, cunhada. Sei que devo a ela parte do que sou, no interminável diálogo que é a vida. A morte seria o fim desse diálogo? Minha fé teima em dizer que não. Na verdade, a morte é um outro diálogo que se inicia: só que agora cabe a nós que ficamos sustentá-lo, até que também sejamos abraçados pelo Silêncio, onde despertaremos para o Eterno Amor.

Professora Angelita, seus meninos cresceram, alcançaram seus objetivos. Ajudados por Deus e pela sorte, sobrevivemos neste mundo tão lindo e tão hostil. Obrigado pela sua presença em nossas vidas. Um dia, nos veremos de novo, face a face, e saberemos um do outro, ao fim, a exata dimensão da nossa alteridade.

Até um dia, professora Angelita.


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