Natascha Stefania Carvalho De Ostos*
O historiador Jacques Revel afirma: “Em um momento em que se evoca tão voluntariamente […] o dever de memória, talvez não seja inútil lembrar que existe também um dever de história” (2010). Mas o que isso significa? Memória e história dialogam, mas não se recobrem. A memória diz respeito à subjetividade da lembrança, e tem a pretensão de fidelidade, de recobrir a realidade. Já a história-conhecimento trabalha com a interrogação, busca gerar flexões, crítica, desafiando a sacralização da memória e problematizando as relações entre passado e presente.
Tendo em mente a possibilidade de diálogo entre memória e história, a Fiocruz Minas – Instituto René Rachou (IRR), lançou, em fevereiro de 2019, o Projeto Memória: trajetória histórica e científica do Instituto René Rachou. A iniciativa atende a uma demanda interna, da comunidade do IRR, interessada em conhecer a história da Instituição e promover a organização das memórias coletivas e individuais relacionadas à unidade. Antes disso, esforços já tinham sido feitos para construir a história da Fiocruz Minas, e importantes pesquisas foram desenvolvidas para investigar trajetórias individuais de pesquisadores, mas as iniciativas eram pontuais ou muito específicas.
O Projeto Memória visa promover a investigação, a organização e a divulgação das memórias-história do IRR. Parte-se do pressuposto de que a Instituição é um agente coletivo, com propósitos específicos, mas fluidos, construídos na prática institucional. Por isso mesmo, apesar do reconhecimento de que a Fiocruz Minas possui uma identidade, entende-se que ela é histórica, mutável e polifônica, composta de diversos atores, individuais e coletivos, entrelaçados em situações de permanência e transformações. Metodologicamente, para mapear essas memórias foram elaborados três eixos organizadores, ou percursos, que longe de isolar ou esgotar as possibilidades de enfoque, são pontos de partida para sistematizar as fontes históricas e a produção do conhecimento. O primeiro eixo, chamado “Trajetória histórica do Instituto René Rachou”, se debruça sobre as fases administrativas da Instituição e sua organização interna. O segundo percurso, “Personalidades do Instituto René Rachou”, trata da trajetória dos seus funcionários, com ênfase nos pesquisadores. Por fim, o eixo “A atuação do Instituto René Rachou na saúde pública”, investiga o impacto histórico-social das pesquisas e ações institucionais.
A partir de estudo bibliográfico, pesquisa documental e realização de entrevistas, o projeto vem concretizando importantes resultados. As produções são disponibilizadas no site da Fiocruz Minas, de modo a facilitar o acesso ao material. No caso dos textos elaborados, busca-se uma linguagem acessível e objetiva, mas sempre subsidiada pelos protocolos da pesquisa historiográfica. Os temas desenvolvidos não seguem apenas uma diretriz interna ao projeto, mas também atendem às necessidades da comunidade do IRR, que solicita aos coordenadores produções específicas (textos, roteiros de vídeos), sobre assuntos pertinentes aos diversos setores da Instituição e sobre marcos comemorativos. Além desse caráter de abertura para o coletivo, o Projeto Memória também pretende alcançar um público mais amplo, e por isso criou um canal de podcast, chamado História ConsCiência, voltado para professores, pesquisadores e estudantes interessados em história da ciência, com programas mensais, gratuitos, destinados a divulgar a história da Fiocruz Minas, que se interliga com a própria história da ciência de Minas Gerais e do Brasil.
O projeto está em andamento e tem ampliado seu escopo, pois além das pesquisas historiográficas, conta com especialista em museologia, dedicada a inventariar, organizar e estudar o acervo museológico do IRR. Em meados de 2020 o projeto começou outra etapa, obtendo financiamento para continuar seus trabalhos e iniciar a organização de acervos documentais de pesquisadores, com auxílio de profissional arquivista.
A Fiocruz Minas é um patrimônio do povo brasileiro, e como tal sua história e suas memórias precisam ser cuidadas. O Projeto Memória busca, mais do que “resgatar” o passado, dialogar com o presente e imaginar futuros para a ciência brasileira. Em momentos de crise, como o que vivemos hoje, é fundamental atentar para a diversidade da memória e para a crítica histórica, capazes de desafiar e desestabilizar os enquadramentos oficiais e os discursos hegemônicos, evidenciando como as instituições científicas nacionais produziram e produzem pesquisas de qualidade, com enorme impacto positivo na vida da população brasileira.
* Historiadora – Pós-doutoranda da Fiocruz Minas
Referência:
REVEL, Jacques. História e historiografia: exercícios críticos. Curitiba: Editora UFPR, 2010.
Produções do Projeto Memória:
– Site da Fiocruz Minas: www.cpqrr.fiocruz.br/pg/historia/
– Podcast História ConsCiência: www.breaker.audio/historia-consciencia
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Este texto integra uma parceria entre o Pensar a Educação, Pensar o Brasil 1822/2022 e o Instituto René Rachou (Fiocruz) para promover ações e reflexões em torno da Educação para a Saúde.