Por uma escola que seja um porto seguro para a infância e a adolescência

José Heleno Ferreira

Conforme notícia veiculada na mídia durante esta semana, apresentando informações do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, pelo menos 35.735 crianças e adolescentes de zero a 13 anos foram estuprados no Brasil em 2021. Os dados são alarmantes… A cada hora quatro crianças são estupradas no Brasil. A pesquisa revela também que a grande maioria das vítimas tinha algum tipo de vínculo com os autores dos crimes: 40% dos estupros e abusos foram praticados por pais ou padrastos; 37% por primos, irmãos ou tios; quase 9% por avós. Trata-se de uma situação que atinge crianças e adolescentes de diferentes camadas da sociedade: meninas e meninos pobres e também de classe média.

É relevante também a informação de que este número cresceu exponencialmente durante o período em que as escolas estiveram fechadas devido à pandemia de COVID-19. São dados que nos provocam e nos fazem pensar sobre a importância de a escola discutir as temáticas da educação sexual e da diversidade de gênero, buscando garantir que nossas crianças e adolescentes estejam seguros e tenham a quem recorrer em casos de abusos, uma vez que a grande maioria destes crimes vem à tona exatamente nas salas de aula, quando meninas e meninos se sentem amparadas e amparados por professores e professoras atentos e com sensibilidade para a escuta, para a acolhida.

Como professor, trabalho na educação básica há mais de três décadas e os dados desta pesquisa me remeteram à lembrança – ao mesmo tempo dolorida e intensamente gratificante – de um fato vivenciado há aproximadamente dez anos. Trata-se da história de um jovem trans que, naquele momento de sua vida ainda se identificava como uma menina lésbica e era minha aluna no nono ano do ensino fundamental.

Numa determinada manhã a menina chegou à sala de aula com o corpo todo marcado por vergões: havia sido surrada pela mãe que descobrira que ela estava namorando uma garota. A primeira atitude, obviamente, foi ouvir a sua história, o seu choro, acarinhá-la para que tivesse segurança e tranquilidade para expor suas dores. Em seguida, conversando com as professoras que trabalhavam com a mesma turma, buscamos ouvir também a mãe da menina.

Moradora de um bairro periférico, mãe solo, morava com suas filhas (a segunda, mais nova que a minha aluna). Uma mulher trabalhadora e extremamente religiosa. Estabelecemos, então, um processo de escuta carinhosa com a mãe – que também estava sofrendo muito, sentindo-se culpada pelos “erros” da filha, atormentada pelo medo do “olhar” da vizinhança e das pessoas que frequentavam o mesmo templo religioso que ela. Foram muitos os momentos de diálogo, sendo necessário, inclusive, ir até a casa em que moravam, para que fosse possível o encontro, pois a mãe trabalhava durante todo o dia. Os primeiros encontros foram difíceis e tensos. Aos poucos, à medida que estabelecíamos um laço de confiança mútua, avançamos em torno do debate a respeito da identidade de gênero e a mãe conseguiu se organizar para ir à escola algumas vezes. Nestes encontros, conseguimos ler pequenos textos e conversar sobre alguns filmes ou trechos de filmes previamente escolhidos para abordar a temática.

Aos poucos os ânimos entre mãe e filha foram serenando e a relação entre as duas foi evoluindo para a compreensão mútua, o carinho, a cumplicidade…

Ao final do ano letivo, a escola, como costumeiramente acontece, organizou um momento festivo para celebrar o encerramento do ensino fundamental. Era uma noite de dezembro e foi muito emocionante ver, chegando à escola, juntas, a mãe, a filha mais nova, a minha aluna e sua namorada. Uma família – que enfrenta dificuldades, que vivencia seus conflitos, mas que se une para celebrar a conquista de uma das pessoas que a compõem. Uma família formada por pessoas que têm diferentes pontos de vista sobre a realidade, mas que se respeitam e que se amam.

Lembrar desta história ainda hoje me emociona. E trazê-la à tona neste espaço em que se busca discutir a relação entre educação e direitos humanos é extremamente pertinente. Seja devido aos ataques que a educação básica vem sofrendo – como o projeto de lei que propõe o ensino domiciliar, seja o falso discurso moralista que busca impedir que professores e professoras exerçam com radicalidade a docência como processo de emancipação e libertação – seja devido aos números que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública apresenta sobre a violação dos direitos de crianças e adolescentes.

Diante deste contexto, há que se afirmar a importância da escola como instituição que promova e contribua com a construção do conhecimento. E também há que se afirmar a importância da escola como espaço de convivência, espaço em que meninos e meninas sejam livres e encontrem amparo para suas dores e para as violências a que são submetidas numa sociedade que ainda não aprendeu a respeitá-las.


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