Xiô Liberdade! A vida vale ouro.

Pedro Henrique Souza da Silva

[…]

Toda quebrada toda cidade
Tem algum sangue bom que deixou saudade
Pra quem tá ouvindo atrás da grade
A melhor cantora é a liberdade

(Renan Inquérito)

Devido ao transporte público precário, nós, da região metropolitana de Belo Horizonte (BH), temos mais facilidade de chegar ao centro da capital mineira, do que nos locomovermos pelas nossas cidades. Por isso, crescendo nesses municípios (Santa Luzia, Ribeirão das Neves, Vespasiano) sempre ouvia as pessoas falarem: “vou ao centro”, para se referir ir à BH, por sua vez, quando queríamos nos referir às nossas cidades usávamos “vou ao centro de Vespasiano”, por exemplo.

Mais tarde, já estudando e trabalhando em BH, descobri a nossa vocação para sardinha nos apertando em ônibus lotados, com passagens cada vez mais caras. As conduções eram, também, momentos de criar laços, fazer amizades. Nessa ocasião, conheci na prática o paradoxal conceito de “cidade dormitório”, pois estudava, trabalhava, me divertia na capital mineira, passava mais tempo lá do que em minha cidade.

Só depois de dois anos como licenciado em Língua Portuguesa é que consegui meu primeiro emprego na minha cidade. Fui contratado como professor designado para atuar em uma escola alojada no presídio municipal.

Em tempos anteriores ao ensino remoto, o meu emprego exigia que acordasse por volta das cinco da manhã, pois não tendo veículo próprio, dependo do transporte público. No meu bairro, no entanto, a idiossincrasia da linha alimentadora faz com que ela passe pontualmente entre 5:40h e 6:20h da manhã, sendo necessário chegar ao ponto no início deste intervalo para evitar não só a tensão do suspense, bem como não gastar, logo cedo, as promessas feitas aos céus pedindo para não perder a condução.

Após chegar ao centro de Vespasiano ainda são necessários alguns minutos de caminhada, já que esta unidade prisional não foge à regra, sendo isolada da cidade. Não raro, familiares das pessoas que cumpriam suas penas ali, mas também funcionários me faziam companhia na caminhada.

Neste trajeto, o subir e o descer dos morros faz com que seja difícil ter orgulho das montanhas de Minas Gerais. Certa vez, na descida da última ladeira para chegar ao emprego, distraído em meus pensamentos, já imaginando a subida que me esperava na volta, vejo alguém sem camisa subindo quase que dançando, parecendo ignorar a subida. Já próximos, nos reconhecemos, era um educando, ao me ver ele gritou “xiô liberdade”. Depois do encontro, continuamos nossos caminhos.

Quem já esteve em uma unidade prisional pode observar, muito provavelmente, a euforia que toma conta do ambiente quando alguém recebe o alvará, os gritos são somados ao bater das portas, aos risos. O encontro com o educando me fez lembrar desses momentos, por isso naquele dia cheguei na classe, comentei o acontecido e escrevi no quadro: “quer saber o que é felicidade? Vá à porta da tranca e espere o alvará de um irmão cantar!”, de pronto outro educando respondeu: “quer saber o que é felicidade? Voltar para família e viver com dignidade!”, dali em diante a aula do dia foi guiada por este tema, falamos sobre a liberdade.

Os acontecimentos daquela ocasião me colocaram a pensar sobre a função de um educador que atua no sistema prisional. Acredito que para educar nesses espaços é necessário que o educador mantenha um compromisso inegociável com liberdade, neste sentido não se trata de perdoar, ou castigar os sujeitos ruins, mas sim de esperançar uma sociedade livre, equânime, cujo reconhecimento-acolhimento sejam valores permanentes. Por fim, que sejamos guiados pelas palavras de Paulo Freire (1987, p. 18): “A liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige uma permanente busca. […]. Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por ela precisamente porque não a tem. Não é também a liberdade um ponto ideal, fora dos homens […]. É condição indispensável ao movimento de busca em que estão inscritos os homens como seres inconclusos”.

 

1 – Professor da rede pública de ensino, atuando com Educação de Jovens e Adultos (EJA) em contexto de privação de liberdade. É mestre em Educação e Docência pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG), bem como graduado em Letras/Licenciatura em Língua Portuguesa. É, também, iniciado nas tradições do candomblé de Angola na comunidade-terreiro Casa de Cultura Lodé Apará.

 

Para saber mais: 

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.


Imagem de destaque: WRI Brasil

 

 

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