Você é?

Bruna Amato

São nove horas da manhã de uma sexta-feira. Online, que é o recurso pandêmico da atualidade, vinte pessoas se reúnem com câmeras alternando entre ligadas e desligadas. Os microfones absolutamente mudos – uma característica dessa nova modalidade – para evitar interferências durante as falas (quem dera o presencial garantisse essa cortesia). Em cada quadrado um universo inteiro…entre nós, duas semelhanças, apenas: sudacas e dissidentes. 

Tem de tudo, ali, naquela rede de conexões homogêneas, exceto homogeneidade. Um punhado de mancas, outras cegas, todas tortas – sem dúvida alguma. As cores dali também são variadas – corpos marcados pela miscigenação, que de democracia racial não têm nada. Os gozos também são múltiplos, cada qual se inclina na direção necessária pro orgasmo acontecer. 

As dúvidas que pairam naqueles ares da manhã de sexta-feira: como parar de morrer?

Calma, ninguém quer ser vampira! Mas pós-humanas não podem viver em paz e, dizem as más línguas, que nossa existência é profana, imunda e inumana. O chorume da desgraça, eles insistem. Nisso, a gente aproveita pra se desorganizar…a ciência que nos livre de organizações! 

Nossos encontros, cheios de pretensão, são talhados na insistência meta-humana em permanecer vivas…nisso, a gente faz estratégias. Ao contrário daqueles que, todos os dias, se preparam pra batalha, nós nos preparamos pro dia em que deixaremos de batalhar.

A gente anuncia no megafone: venham todas as aleijadas, todas as transviadas! Venham…aqui o pacto é não morrer!

Somos hipócritas em usar a universidade, esse espaço que está tão distante das comunidades? Estamos reproduzindo opressões se, de alguma maneira, o básico pra estar aqui, por si, já é excludente? Nossas bioidentidades não são tudo que nos resta pra continuarmos existindo?

E esses termos da gringolândia, queer, crip? Eu sou isso? Você é?

Sério, você é?

O que somos é um conglomerado constantemente atravessado por racismos, transfobia, misoginia, lesbofobia, capacitismo, etarismo e classismo…em resumo, somos pequenas máquinas de reprodução de hierarquizações, relações de poder e opressões. Ca-da-u-ma-de-nós. Subjetivadas pelo capitalismo, somos condicionadas a tratar de questões sociais como produtos, e pessoas como público…porque assim somos organizadas. Mas a principal característica de um conglomerado é que sua formação é composta de partes diferentes, de origens diversas.

Às nove horas da manhã, de quinze em quinze dias, às sextas-feiras, a gente se reúne pra talhar essa sedimentação. Cada qual com suas ferramentas e seus quilômetros de distância, incansavelmente, aplicando a máxima guattariana de raspagem do fascismo interiorizado em cada uma de nós – que, de tão incrustado, por vezes nos faz desejar ver a mesma dor que nos dói, aplicada na outra. 

Você é isso?

Eu sou uma puta insistente… a porrada vem, o sangue escorre, eu faço história. O sangue nem é vermelho, porque eu não sou humana. Eu sou prótese, eu sou acontecimento, eu sou transprodução. Assim como Preciado (2014, p. 207), eu sou o “desvio de um processo de reprodução”.

Cada uma das vinte pessoas daqui impacta outras tantas acolá. Dá dicas, conta histórias, indica possibilidades outras. Em quantas nós nos desdobramos, eu não saberia dizer, mas que esses movimentos micropolíticos produzem diferença, isso não há como duvidar. Produção de diferença é produção de intensidade e produzir intensidade é possibilitar vida.

E, se a cada quinze dias, o medo de ser pouco nos sufocar, a gente força a memória pra resgatar o lugar que nos pertence. Qualquer lugar. Eles nos deram o “direito” de ocupar qualquer parte do mundo, porque fantasmas não têm massa. Corpos abjetos, descartáveis, não inspiram muitos cuidados. Eles nos vigiam, mas sabem muito pouco sobre nós. 

Quando eles piscam, esperando que na mesma velocidade a gente desapareça, nós superlativizamos esse corpo abjeto – do asco – e metamorfoseamos ele num corpo abjeto-político, da luta. Pronto, se viver é verbo intransitivo, meu corpo político valsa em eterna transição, trânsito, movimento…

Em brasileiro ou gringolês, o que não pode escapar é que as nossas existências falam por si, contam histórias, produzem cultura, articulam saberes e desarticulam as estruturas econômicas do macho branco cis hétero ocidental sem deficiência. 

Quem não me deixa mentir e suporta empiricamente esse texto não é nem a Santa Butler, nem o São Foucault – da falecida Hija de Perra (2015) -, tampouco os franceses da loucura esquizo, que eu tanto admiro, Deleuze e Guattari…nem as gloriosas Angela Davis e Conceição Evaristo…nem Paul Preciado, ou Maria Lugones, ou Robert McRuer, ou Lucas Platero, ou Alison Kafer, ou Berenice Bento…senão Taiane Machareth, da favela do Turano. Mulher preta, com deficiência, sem graduação, Taiane estreou, em dezembro de 2021, a primeira roda de conversa sobre deficiência na comunidade onde reside, na zona norte do Rio de Janeiro. 

Nesse planeta pós-apocalíptico e insurgente em que a gente vive, a distopia começa na palavra. Aqui, nessa terra que a gente mesma devastou, é preferível ser cega do que ver essa linhagem plástico-branco-pálida, chata, cansativa e brega. É indiscutivelmente melhor ser surda do que ouvir tanto grito de guerra. Melhor mesmo é poder se acoplar e se desacoplar. 

Meu sexo, minha perna, meu útero, meus ossos quebradiços, meu olho de vidro que se revira em escárnio, mas você não nota porque prefere não nos encarar. Nós somos medusas, e me afrontar não é uma boa alternativa mesmo…a menos que você queira ser petrificado. Eu movimento, você pedra. Cada marcha pra me alcançar se esfarela, se esfarela. 

Vai sobrar o quê, quando essa maratona acabar? 

Minha transmutação-supersônica-quimera-mutante-ciborgue? 

Ou você, farelo?

Esse é um relato da minha experiência ao dar uma palestra sobre Teoria Queer para as integrantes do NED – Núcleo de Estudos da Deficiência, da Universidade Federal de Santa Catarina. Meu corpo lésbico e periférico falou por duas horas, naquela sexta-feira. Taiane vai levar a palavra pra produzir diferença através do seu corpo defiça. Que mais de nós saiam daqui e se espalhem por aí.

 

Sobre a autora

Bruna Amato é mestranda em Psicologia Social na Universidade Federal de Santa Catarina. Sua pesquisa tem enfoque em questões de violências de gênero, discursos de ódio e esquizoanálise. Possui formação em Psicanálise e licenciatura plena em Educação Física. Pesquisadora nas áreas de: Gênero, Sexualidade, Teorias Queer e Crip, Estudos da Deficiência, Esquizoanálise, Política, Feminismos, Mulheridades e Lesbiandade. Atualmente é esquizoanalista voluntária na ONG ADEH – Associação em Defesa dos Direitos Humanos; integrante no Núcleo Faladeiras , do departamento de Serviço Social (UFSC) e, mais recentemente, do Núcleo de Estudos da Deficiência (NED – UFSC). Ativista pelos Direitos Humanos, Direitos LGBTs e Direitos das Mulheres.

Para saber mais 

DE PERRA, Hija. Interpretações imundas de como a Teoria Queer coloniza nosso contexto sudaca, pobre de aspirações e terceiro-mundista, perturbando com novas construções de gênero aos humanos encantados com a heteronorma. Revista Periódicus, [S. l.], v. 1, n. 2, p. 291–298, 2015. DOI: 10.9771/peri.v1i2.12896. Acesse aqui

PRECIADO, Paul Beatriz. Manifesto Contrassexual. São Paulo: n-1, 2014.


Imagem de destaque: Galeria de Imagens

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